"Fogo bom" – uma forma de evitar Pedrógão

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O habitual é chegar-se às datas como a de ontem -- seis anos sobre Pedrógão -- e concluirmos que está tudo igual. E na verdade, na floresta, praticamente nada mudou. Há muitos planos, o país continua colonizado por manchas contínuas de eucalipto e pinheiro-bravo, o cadastro rural está por fazer e o perigo continua à espreita devido às crescentes amplitudes térmicas e vagas de calor. No entanto, aprendeu-se alguma coisa com os incêndios de 2017. O Governo criou a Agência para a Gestão dos Fogos Rurais (AGIF) para que não se repetisse o inacreditável número de 120 vítimas num ano e, desde aí, nenhum civil morreu na floresta. O número de incêndios reduziu-se para metade. Ora, não chegamos aqui por acaso.

Comecemos pelo conceito de "fogo bom". Em vez de acreditarmos que vai haver braços e dinheiro para limpar o país inteiro anualmente, a AGIF está a estimular a prevenção contra os grandes incêndios através dos pequenos fogos controlados de inverno - o fogo bom. Ou seja, indo na linha do que sempre fizeram pastores e lavradores, pretende-se renovar as pastagens e os terrenos com o fogo através da queima de plantas secas ou mortas. Com isso, retira-se muita matéria combustível que alimenta os grandes incêndios de forma imparável.

Este exemplo faz parte da estratégia da AGIF sobre onde investir o dinheiro. Em 2017, o orçamento para os fogos florestais dedicava 28 milhões à prevenção e 115 milhões para supressão do fogo (bombeiros e meios de combate). Nos últimos anos os números duplicaram: passamos para 320 milhões. No entanto, perto de metade -- 145 milhões -- não foram para o sítio do costume, mas sim para prevenção.

Entretanto, a AGIF passou a ser parceira da rede internacional das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres. A Conferência Internacional desta rede de organizações teve especialistas de 90 países em Portugal e foi possível conhecer experiências tão diversas como as dos fogos na Amazónia, nos Estados Unidos ou em África. Entretanto, enquanto isto acontecia, o presidente da Liga de Bombeiros dava uma entrevista ao Público com o título: "Incorporar experiências estrangeiras no combate aos fogos é uma deriva perigosa". Como se Portugal fosse um país fora do planeta e não tivéssemos nada para aprender.

Tiago Oliveira, presidente da AGIF, está sempre na mira dos bombeiros por dizer coisas como esta: "Temos de lançar ovelhas e cabras a partir dos aviões." A ironia traduz-se na ideia de que só com mais pastoreio a norte do Tejo será possível haver menos matéria orgânica nos terrenos, a exemplo do que acontece no Alentejo, que apesar de muito mais quente, arde menos (e obviamente também porque há menor presença de grandes manchas de eucalipto). Simples e ecológico. Portanto, indesejável.

Outra ideia da AGIF é a de criar pedagogia sobre os incêndios das épocas menos quentes -- deixando-os evoluir controladamente -- como forma de "limpar" áreas suscetíveis para o verão. Além disso, Tiago Oliveira quer destacar orçamento para que as corporações de bombeiros e as Câmaras municipais possam ajudar as populações a realizar as ancestrais queimadas de inverno.

Como tudo isto é mais barato e mais eficaz -- e altera a base do negócio que está instalada no terreno --, é possível perceber todos os dias nas notícias quem quer controlar o dinheiro. Um exemplo: o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, teve de vir garantir esta semana, em certo sentido sob chantagem das corporações de combate, que teremos mesmo "72" meios aéreos (e não 60, como parecia provável), custem estes meios o que custarem. Caso contrário, ficaria na opinião pública a ideia de que o Governo anda a poupar no ataque aos incêndios.

Entretanto, um pequeno parêntesis para lembrar que o dinheiro para combate sai todos os anos do erário público e o Governo do PS nunca teve a coragem de colocar no Orçamento de Estado uma "contribuição especial" da indústria da floresta para o combate ao fogo, apesar de aprovada em 2018 no Parlamento. Nada fazendo, as Finanças deixam nos contribuintes os 300 milhões de custo e mantêm totalmente privados os ganhos de uma indústria brutalmente lucrativa como é sobretudo a da fileira da pasta de papel. Agora imaginem que estas indústrias contribuíam, por exemplo, com um terço do orçamento que todos pagamos para o país não arder de lés-a-lés, e esse valor era dedicado a mais prevenção. Provavelmente diminuiríamos ainda mais o risco para todos, numa altura em que renasce a esperança de maior povoamento fora das áreas metropolitanas - um regresso ao campo pós-pandemia.

O Interior de Portugal é um grande ativo nacional e só pode renascer com uma gestão mais inteligente do fogo. Felizmente estamos a conseguir alguma coisa. Deem tempo à AGIF e talvez consigamos mitigar a tragédia do aquecimento global. Os recentes incêndios do Canadá, que não deixaram Nova Iorque respirar e estão a chegar à Europa, mostram-nos, uma vez mais, como não podemos usar as velhas táticas para as devastações dos novos tempos. O mundo está a arder: só nos resta usar o fogo bom contra o fogo incontrolável.


Jornalista

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