Fluxos de pessoas e dados através do mundo

Publicado a

Quando as fronteiras físicas se tornam mais porosas, a gestão dos fluxos digitais torna-se determinante. O futuro da mobilidade humana global não se joga apenas nos aeroportos, joga-se sobretudo nas bases de dados.

Nunca os fluxos de pessoas estiveram tão ligados aos fluxos de dados. Se as migrações representam as pessoas em movimento, são os dados que constroem ou bloqueiam os caminhos de acesso ao direito, à dignidade e à pertença. A gestão migratória tornou-se na prática um exercício de interoperabilidade entre sistemas, instituições e sobretudo entre visões de cada país.

Portugal vive um momento sensível. Com uma população a envelhecer e um saldo natural negativo, o crescimento demográfico tem sido assegurado quase exclusivamente pela imigração. Os 1,5 milhões de estrangeiros residentes no nosso país são hoje parte integrante da nossa sociedade. No entanto, a sua inclusão continua a esbarrar em muros burocráticos, sociais, tecnológicos e ideológicos.

Vivemos um paradoxo, pois a economia precisa da força de trabalho imigrante, mas o Estado falha em reconhecê-la em tempo útil. Centenas de milhares de processos acumulam-se na AIMA, com atrasos na regularização legal que mantêm milhares de vidas em suspenso. Muitos destes bloqueios devem-se à fragmentação dos sistemas de informação, à falta de interoperabilidade entre plataformas públicas e à ausência de uma estratégia tecnológica orientada para a inclusão.

Trata-se de mais do que a eficiência administrativa, pois está em causa a própria noção de cidadania em tempos de mobilidade. Sem se conhecer a realidade migratória e sem se conseguir validar devidamente e em tempo útil os documentos que entram nos nossos sistemas, não é possível planear nem aplicar políticas públicas eficazes e oportunas.

Se a integração é um compromisso constitucional, então os dados e os sistemas que os gerem devem ser instrumentos de inclusão e não de exclusão. A identidade digital deve tornar-se a chave para uma cidadania funcional, pois desde o momento da chegada, a pessoa migrante deve ser reconhecida como cidadão com direitos e deveres, mesmo sem documentos comprovados pelo país de origem.

É urgente acelerar a atribuição de um “Cartão de Cidadão Imigrante” a cada estrangeiro que resida e trabalhe em Portugal, com dados biométricos encriptados, de acordo com as normas europeias, permitindo o acesso a serviços como saúde, educação, emprego e habitação, com a inserção plena no sistema público e acompanhamento fiável dos seus eventos de vida, como acontece com qualquer cidadão nacional.

A partilha de dados com os países de origem, através de fluxos digitais seguros, poderia acelerar a verificação de identidade, contudo são conhecidos os corredores de documentos falsos controlados por máfias de tráfico humano e as limitações registrais de alguns desses países.

Há um risco real de confundirmos segurança com controlo e tecnologia com vigilância. Os dados não podem ser usados como armas de exclusão ou como ferramentas de discriminação algorítmica. É essencial garantir que os sistemas digitais respeitem a privacidade, sejam geridos por entidades públicas nacionais e não fiquem à mercê de redes de tráfico humano.

Em última instância, os fluxos de dados podem humanizar os fluxos de pessoas ou transformá-los em números invisíveis à mercê de desígnios políticos. A escolha é se queremos sistemas que protegem e incluam os mais vulneráveis ou sistemas que os esquecem e ignorem para manter a dúvida e o medo como arma que alimenta populismos e máfias.

Num mundo onde a mobilidade é irreversível, a inclusão começa num algoritmo e Portugal, se quiser sobreviver demograficamente e manter-se fiel aos seus princípios, terá de escrever esse futuro com dados justos, acessíveis e profundamente humanos.

Especialista em governação eletrónica

Diário de Notícias
www.dn.pt