Nunca esqueci a senhora Isilda, uma idosa antiga, muito bonita e viva, com filhos, que, já com 91 anos, um dia no café me esclareceu quanto ao baptismo: segundo ela, baptizam-se as crianças pequeninas para receberem o Espírito Santo que é mais forte do que Jesus e que é o Espírito falador: é ele que dá às crianças a capacidade divina para falar..À sua maneira, a senhora Isilda tinha consciência do milagre que é falar. Quem algum dia reflectiu sobre isso - a capacidade de falar: proferir sons articulados que transportam sentido - falando, dizemo-nos a nós próprios, damos ordens, fazemos declarações de amor, e ódio também, ensinamos, contamos anedotas, fazemos paralisar um homem, levamos uma mulher à lua, discutimos sobre o que há e o que não há, sobre o possível e o impossível, dirigimo-nos ao Infinito... -, não pode deixar de cair no assombro interrogativo..Um corpo humano, pelo simples facto de falar, nunca deixará de constituir um enigma e mesmo um milagre pura e simplesmente. Lá está Aristóteles, que viu bem ao definir o ser humano como animal que tem fala (zôon lógon échon), sendo, por isso, animal político (zôon politikón), com a capacidade de distinguir e discutir sobre o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o bem e o mal... Ah! Se os políticos soubessem disto e agissem em consequência!....E as palavras não são arbitrárias. Assim, muitos já estão em férias, outros irão para férias. Ora, cá está: a palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de “descanso, repouso, paz, dias de festa”. No século III, a Igreja assumiu os dias da semana como dias de “comemoração festiva”, enumerando-os como feria prima, feria secunda, tertia, quarta, quinta, sexta, ou, invertendo a ordem das palavras: prima feria, secunda feria, tertia feria, quarta feria, quinta feria, sexta feria..Daí, ao contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: lunes, martes, lundi, mardi, etc., o português, ao seguir a designação eclesiástica, ter dado origem aos dias da semana como: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. Que feira, enquanto mercado esteja associada a feria, deriva do facto de os comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias - aliás, isso ainda hoje acontece frequentemente..De qualquer modo, o importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico, o carácter festivo associado às férias. Isso é tanto mais significativo, quanto isso mesmo está presente noutras línguas, que seguiram caminhos etimológicos diferentes. Assim, em espanhol, férias diz-se vacaciones e, em francês, vacances. Ora, vacaciones e vacances têm o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, e isso quer dizer: em dias santos. Os alemães, esses têm ferien ou urlaub. Ora, a raiz de urlaub é erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho..É necessário sublinhar que a Bíblia faz questão de dizer que Deus deu um mandamento de um dia feriado semanal santo, sem trabalho, para que o ser humano fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo. Tem de trabalhar - e duro -, mas não é besta de carga. E Jesus também trabalhou e trabalhou no duro. Quantos padres falam disso? Mas também descansou e tentava levar os discípulos para um lugar recôndito onde pudessem repousar..Mas, aqui chegados, é preciso reflectir, pois, se pensarmos bem, os dias de descanso semanal e as férias não têm, ou, pelo menos, não deveriam ter, como finalidade única e última ser só um intervalo no trabalho para repor as forças, em ordem a trabalhar outra vez e mais..As férias e o descanso semanal têm o seu fim em si mesmos: a experiência de que o ser humano é um ser festivo. É preciso ler e escrever poesia, dançar, apanhar sol na praia, no campo, na montanha, ouvir música excelente, que nos remete para origens imemoriais e para a transcendência utópica toda. É preciso reaprender a ver o Sol a nascer no Oriente e a pôr-se no Ocidente (sabia?) e a exaltar-se com a Lua enorme - cheia - ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das estrelas: isso que na cidade se não vê..É preciso voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o perfume de uma rosa sem porquê, como dizia Angelus Silesius, exaltar-se com o mistério de qualquer rosto humano. É preciso ter tempo para ouvir o silêncio: haverá milagre maior do que estarmos cá?.Se se for fora, encontrar-se com culturas outras e diferentes modos de ser ser humano: como americano, como asiático, como africano e, de modo mais concreto, como chinês, como ugandês, como mexicano (nestes tempos de globalização, que Deus nos livre da uniformidade!)..É preciso ter tempo para a família e para os amigos. Para andar solto. Para dialogar com o Infinito. Para contemplar e criar beleza: não é ela que redime o mundo, como disse Dostoiévski?.Ai de quem, concretamente nestes tempos de dispersão, de barulho ensurdecedor e correria sem fim não se sabe muitas vezes para onde, não tenha todos os dias um pouco de tempo para o melhor: estar consigo lá no mais íntimo para se concentrar e conviver com o milagre de viver - sim, viver é um milagre - e encontrar o mistério da Transcendência e Sentido. .Escreve de acordo com a antiga ortografia