Falar sobre abuso sexual traumatiza as crianças?

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Muitas pessoas questionam-se sobre a possibilidade de as crianças se sentirem assustadas ou mesmo traumatizadas ao abordarem o tema dos abusos sexuais. É uma preocupação legítima que urge desconstruir. Assim, e à pergunta “falar sobre abuso sexual traumatiza as crianças?”, a resposta mais correta é: depende da forma como se falar.

Sabemos que a responsabilidade pela prevenção dos abusos sexuais é dos adultos em geral e da sociedade como um todo, e não das crianças. No entanto, e se é uma verdadeira estratégia preventiva global que se deseja, não chega apostarmos apenas no desenvolvimento de ações centradas nos adultos – precisamos de políticas integradas com estratégias que também envolvam as crianças, para que estas possam adquirir mais conhecimentos (sobre o que é o abuso sexual e quem o pode cometer) e desenvolver competências (para saberem reconhecer eventuais situações de risco e pedir ajuda).

Falamos, assim, da necessidade em atuar aos vários níveis do sistema, pensando na definição de políticas preventivas mais gerais e em medidas que devem ser adotadas pelas diversas organizações, bem como em programas centrados nas famílias e nas crianças (estas últimas, a um nível microssistémico).

Importa salientar ainda que os programas preventivos centrados nas crianças procuram, em última análise, prevenir que essas mesmas crianças possam vir a ser vítimas de abuso sexual. Em simultâneo, e atendendo às competências que são trabalhadas, procuram também prevenir que essas crianças possam vir a exibir comportamentos sexualmente abusivos.
Vários países (como o Canadá, o Reino Unido e os Estados Unidos da América, entre outros) têm vindo a desenvolver programas de prevenção do abuso sexual centrados nas crianças desde há algumas décadas, o que permite ter hoje acesso a estudos de impacto, ou seja, à avaliação da eficácia desses mesmos programas.

Mas vejamos primeiro a que programas nos referimos, os temas que abordam e as estratégias a que recorrem.

Existe consenso na literatura em relação a vários aspetos destes programas preventivos que são, acima de tudo, aplicados em contexto educativo. É consensual que devem ser aplicados ao longo do tempo (e não em ações pontuais), envolvendo as crianças (desde a idade pré-escolar) e os seus adultos significativos, recorrendo a estratégias ativas e lúdicas (como os debates, a dramatização, a mímica ou a discussão de situações hipotéticas, por exemplo), que facilitam o processo de aprendizagem.

É consensual também que estes programas preventivos centrados nas crianças devem abordar temas como o corpo, as partes privadas, as emoções, os diferentes tipos de segredos, a capacidade em dizer “sim” e “não” e em pedir ajuda a um adulto de confiança. Para além destes temas mais clássicos, chamemos-lhes assim, os estudos têm vindo a identificar, mais recentemente, outros temas igualmente importantes, nomeadamente, a comunicação assertiva, a resolução de problemas e as competências sociais e emocionais, a par da utilização segura da internet.

Como podemos constatar, são temas transversais que, ao serem abordados de uma forma adequada à idade e nível de desenvolvimento das crianças, permitem uma aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de competências que as ajuda a estarem mais atentas e a sentirem-se mais seguras.

De uma forma resumida podemos ainda referir que os programas de prevenção do abuso sexual devem seguir uma lógica S.A.F.E (R): Sequenciais, com estratégias Ativas, Focados, com uma abordagem Explícita e Reflexiva.

E o que muda nas crianças que beneficiam destes programas?

Muitos estudos têm vindo a ser realizados em termos do impacto destas abordagens preventivas, indicando maior assertividade e capacidade de regulação emocional nas crianças, que conseguem ainda pedir ajuda mais facilmente quando perante uma situação de risco. Uma revisão de literatura recente (2020), por exemplo, dá-nos conta de que as crianças que participaram em programas de prevenção em contexto educativo apresentaram uma probabilidade 82% superior de revelarem a situação abusiva, quando comparadas com os seus pares que não participaram no programa.

Significa isto que, ao envolvermos as crianças de uma forma ativa nos programas preventivos, com recurso a estratégias e a uma linguagem adequadas à sua idade, não as estamos a assustar ou traumatizar. Estamos, sim, a facilitar um processo de maior empoderamento, ajudando-as a distinguir as diversas situações e a saber o que fazer e não fazer perante as mesmas.

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