Falar muito, meditar pouco
Tempos houve em que as intervenções no Parlamento constituíam momentos profundamente sentidos pelos cidadãos, a que assistiam com vivo interesse. Se estudarmos o século XIX e o início do século XX, encontramos bons exemplos dessa vivência cívica, que nos transportava à Antiguidade Clássica, de Péricles a Cícero. Hoje relemos com gosto tais marcos fundamentais da História humana.
Junto da Assembleia da República temos a figura de José Estêvão Coelho de Magalhães, único deputado com direito a ser representado de corpo inteiro, autor de intervenções míticas. Perguntado um dia sobre se se considerava o primeiro dos oradores parlamentares, ele indicou outro nome, indiscutivelmente célebre, com quem terçou armas retóricas em S. Bento e que se elevou à qualidade de interlocutor maior. Referia-se a Almeida Garrett e ainda hoje as palavras de ambos merecem lembrança - são célebres os discursos que ficaram conhecidos como do Porto Pireu, e que chegaram a fazer parte das seletas escolares.
Em fevereiro de 1840, na vigência da Constituição de 1838 e sob um Governo de Setembristas moderados, José Estêvão evocou aquele louco que em Atenas se declarou dono do Porto Pireu e de todos os navios que nele entravam. Criticava, assim, a bancada do Governo ordeiro em funções, que pretenderia ter o exclusivo da razão. E o que estava em causa era a necessidade de uma partilha de responsabilidades, em nome de uma governação para todos.
Coube a Garrett considerar em resposta que ser ordeiro significava cooperar, denunciando que apenas não o queriam os “anónimos conspiradores” que viviam “cobardemente agachados” em “escondidas águas-furtadas”. Haveria que salvar a ordem constitucional, o que pressupunha um entendimento. Infelizmente não houve tal acordo e em 1842 Costa Cabral restauraria a Carta, contra o compromisso de 1838.
O episódio merece recordação, porque a voz de Garrett foi a do médio prazo e do interesse comum, contra o imediatismo. Anos depois, Viagens na Minha Terra, obra-prima da literatura romântica, ilustrando o encontro em Santarém de Garrett com Passos Manuel, o herói de Setembro de 1836 e da Constituição de 1838, daria o sinal de que, como aquele dissera em S. Bento, haveria que cooperar e defender o “interesse na nação”, em lugar de um meio-termo e de um radicalismo exclusivos.
As lições da História apelam ao bom senso em lugar do imediatismo.
E se refiro os dois maiores oradores parlamentares dos alvores do nosso constitucionalismo, devo lembrar o outro nome maior de oitocentos, António Cândido Ribeiro da Costa, “Águia do Marão”, como lhe chamou Camilo, que foi o orador sagrado nas exéquias de Alexandre Herculano, tendo pertencido, por sugestão de Oliveira Martins, ao grupo dos onze que passaria à História com a designação algo irónica de “Vencidos da Vida”. E a sua conterrânea Agustina Bessa Luís disse dele ser necessário “tirar do poço da memória a água pura que nele vive”.
Conhecido como “Boca d’Oiro” pelo extraordinário dom da palavra, atraindo centenas de ouvintes às suas intervenções parlamentares, no que se aproximou de José Estêvão e Garrett, afirmaria na última homenagem que lhe foi prestada na Academia das Ciências, sob a presidência de António José de Almeida: “Nestes tempos fala-se muito, mas medita-se pouco”…