Falar da guerra, para construir a paz
Este ano, a cena internacional não tem sido falha de acontecimentos trágicos. E ainda não sabemos em que fase da tragédia nos encontramos. O enredo faz pensar no Templo da Sagrada Família em Barcelona, obra-prima de Gaudí: vai sendo construído, conforme se pode. Todavia, num contexto bem mais complicado, pois não se percebe como irá acabar nem quem irá colocar a última pedra no edifício, se edifício terminado vier a haver.
Como disse Vladimir Putin, no fórum anual do Clube de Valdai, na semana passada em Moscovo, "temos provavelmente à nossa frente a década mais perigosa, imprevisível e ao mesmo tempo a mais importante desde o fim da Segunda Guerra Mundial". Sabe do que fala, por ser um dos principais arquitetos da crise atual. Porém, à velocidade a que os acontecimentos estão a evoluir, uma década afigura-se como um tempo sem fim. Tudo pode acontecer amanhã ou nos dias seguintes. É esse o meu alerta. Começa a ser urgente travar Putin tão rapidamente quanto possível. Infelizmente, ao ponto a que as coisas chegaram, já não se trata apenas de pôr um termo à agressão contra a Ucrânia. É isso e muito mais.
É fundamental derrotar uma filosofia política que, estando à cabeça do maior país do nosso continente e de um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, olha de alto para nós de modo imperial. Contrariar essa visão imperialista não quer necessariamente dizer guerra, que é um horror que as nações civilizadas não desejam e uma palavra que já não se usa na linguagem europeia contemporânea, nem mesmo por quem manda executar "uma operação militar especial".
Não se trata também de procurar criar um impasse, porque os últimos meses já mostraram que a dissuasão tem os seus limites e os conflitos congelados são como vulcões adormecidos. Tratar-se-ia, numa primeira fase, de definir claramente um conjunto de condições, que o Kremlin teria de respeitar. Não seria um ultimato, mas um enunciado claro de um conjunto de regras básicas de boa convivência entre Estados vizinhos. Perguntar-me-ão quem estabeleceria essas linhas vermelhas. O ideal seria a União Europeia ou a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE). Mas não tenhamos ilusões. Nem uma nem a outra têm a unidade política necessária. Também não podem tais linhas ser definidas por uma organização de natureza militar, pois conviria que fossem acima de tudo políticas, diplomáticas, financeiras, económicas e comerciais, complementares às decisões do G7, mas fora desse grupo, para permitir a participação de pequenos Estados vizinhos da Rússia. A hipótese mais viável seria a de um conjunto de países europeus, todos membros da NATO, uma mistura de músculo económico com uma forte determinação política e a capacidade de recorrer à proteção da Aliança Atlântica, em caso de necessidade. Essa coligação ad-hoc adotaria uma hostilidade híbrida, mas suficientemente clara, em relação ao poder de Putin. Este teria apenas duas opções: ou responder na mesma moeda híbrida, o que pouco afetaria esses países, ou sonhar com uma resposta bélica, o que traria de imediato a NATO para o teatro de operações.
A minha leitura é que Putin não quer entrar num conflito armado com a NATO. As conclusões que está a tirar da campanha contra a Ucrânia parecem óbvias: a parte clássica das forças armadas russas é mais fachada do que realidade; milhões de cidadãos russos descreem da necessidade da guerra; a capacidade logística das forças armadas nacionais roça o medíocre; e os estrategas militares têm medo dos políticos e de lhes contar a verdade nua e crua.
Na realidade, apelo claramente ao uso máximo da força política, nas suas múltiplas vertentes, por estar convencido que estamos a chegar a uma encruzilhada: por um lado, existe no horizonte um sério risco do alargamento do conflito, para além das fronteiras da Ucrânia; por outro, a liderança russa poderá estar agora mais pronta do que há uns tempos para iniciar um processo de negociações. O volte-face respeitante à circulação dos navios cerealíferos - o Kremlin passou de uma posição muito dura a uma moderada num par de dias, sem que houvesse qualquer razão que justificasse a mudança de política - significa, no meu entender, que há vontade de sair do imbróglio em que se meteram a 24 de fevereiro. Por isso, este meu texto é, acima de tudo, uma chamada de atenção: se se apertar o Kremlin com a sabedoria política necessária, é possível que se possa começar a falar de um processo de paz a breve trecho.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU