Eça de Queirós é nosso contemporâneo?
País onde qualquer palerma diz
a tirar do busílis o nariz:
- Não, não é para mim este país.
(Alexandre O’Neill)
A paixão por Eça contrai-se na juventude e perdura para sempre nos nossos modos de dizer e no nosso sentido do ridículo (quando o temos...) como um sintoma mais do que é ser português. Ou brasileiro, pois o culto do Eça chegou a ser designado do outro lado do Atlântico como “ecite”...
A leitura que Eça faz da sociedade sua contemporânea é tão genial que, absorvidos pela suspensão da incredulidade com que abordamos qualquer obra de arte literária e conquistados pela fina arte de ironia com que nos são desenhados os seus personagens, acabamos a olhar para a sua obra como um retrato fiel do século XIX português e a saltar demasiado lepidamente da ficção para a realidade à nossa volta.
“Nada mudou” dizemos, com ares superiores, sentindo-nos iguais ao Eça e forçosamente muito acima dos nossos contemporâneos - mecanismo que o autor que escreve no Público sob o pseudónimo de Rogério Casanova dissecou com pertinência.
A primeira vez que desconfiei desta colagem de Eça à realidade do seu tempo foi com a leitura de Maria Filomena Mónica e dos historiadores sérios do nosso século XIX, não por me dizerem, como o Gouvarinho, “Há talento! Há saber”, mas por me fazerem ver sob o manto diáfano da ironia a nudez forte do real.
Depois, como disse Pedro Adão e Silva no mesmo Público em que escreve Rogério Casanova, é falso, escandalosamente falso, comparar as condições de vida do Portugal de hoje com as do tempo do Eça. Basta pensar na descrição (essa bem próxima da realidade) que ele faz das condições de vida dos camponeses de Tormes nos finais do século XIX e compará-la com as modernas condições de vida das gentes do concelho de Baião.
Mas deixará por isso Eça de ser nosso contemporâneo? Por certo que não. Em primeiro lugar, porque todas as obras de arte geniais, de Homero a Eça de Queirós, serão sempre contemporâneas de todos os tempos e já Marx se interrogava sobre o porquê da intensa atualidade das tragédias gregas. Depois, porque os ridículos que Eça nos revela são de todos os tempos e lugares, como o Dicionário das Ideias Feitas de Flaubert nos poderá ensinar.
O que faz a grandeza de Eça de Queirós é ter criado um mundo fictício tão perfeito que nos envolve completamente nele, para além de toda a suspensão da incredulidade: e assim ocupamos, só pela leitura, o papel do ironista que ri do objeto da sua ironia e por isso a ela se sente superior. Como aquele rei de Portugal, que, como escrevia Eça na sua correspondência, comentava que o país era uma choldra e depois ia caçar tranquilamente para Vila Viçosa.
Diplomata e escritor