Vivemos tempos de assustadoras mudanças no mundo e de eleições legislativas no país. Com tantos comentadores a analisarem estas realidades, o cronista da penúltima página remete-se hoje à cultura, que tem muito que se lhe diga.Sucede que a Imprensa Nacional acaba de publicar a esperada edição crítica de A Cidade e as Serras, essa obra final do nosso Eça, que cabe desbastar dos acabamentos que lhe fez (com a melhor das intenções) o seu amigo Ramalho Ortigão. Ora A Cidade e as Serras conheceu uma interessante evolução na sua receção entre nós.Quando, muito jovem, comecei a ler o Eça, a interpretação dominante deste extraordinário romance era aquela que o ensino oficial e a cultura do salazarismo nos inculcava e que a cultura da oposição comunista vinha confirmar: o grande escritor, perdida a sua intenção de crítica da sociedade, convertera-se a uma ideologia ruralista e conservadora, que vinha ao encontro dos pressupostos daquele regime que o nosso ensino incensava e que a oposição fulminava.Ora, lido com os olhos de hoje, espanta-nos que tenha tido essa leitura uma obra que faz uma crítica tão impiedosa da civilização material do capitalismo e do seu fetichismo das inovações mecânicas e que, olhando para o mundo rural português, não esconde o seu horror com a miséria atroz em que vivem os camponeses, face à alegria renascida do depressivo Jacinto. Jacinto que, aliás, procura melhorar as condições de vida dos seus criados e chega a confessar-se, num jantar de província, como “socialista”, o que, explica, “é ser pelos pobres”.Nos seus últimos tempos de vida, Eça de Queirós confessava-se um melancólico e vago anarquista. Por certo, a sua família manteve um conservadorismo estreito e rígido, mas o que se entrevê nas páginas do Eça final é antes um reavivar de ideais socialmente avançados, a coberto daquilo a que poderíamos chamar, usando um conceito atual, de uma profunda “melancolia de esquerda”. Como esquecer a descrição maravilhosa dos levantamentos camponeses das “jacqueries”, feita no “São Cristóvão” das suas “Vidas de Santos”?O discurso de Zé Fernandes na escadaria do Sacré Coeur pode hoje ser lido como uma antecipação da crítica ecologista à lógica de acumulação que preside à sociedade industrial do capitalismo, ainda que o autor (através do narrador Zé Fernandes) considere tal preleção, com ironia, apenas como “veneráveis invetivas, retumbadas por todos os moralistas bucólicos, desde Hesíodo, através dos séculos”. E, logo a seguir, o diálogo de Jacinto com Maurício de Mayolle traça um panorama impressionantemente bem informado das correntes culturais que atravessaram o final do século XIX, encaradas pela ironia queirosiana como um desfile de modas a suceder-se freneticamente no tempo.De modo que o mesmo António José Saraiva que, no seu livro de 1946 As Ideias de Eça de Queirós considerara A Cidade e as Serras como uma regressão do grande escritor a uma ideologia conservadora ruralista, próxima do Estado Novo, veio reconhecer em 1990, no seu notável livro sobre a geração de 70 A Tertúlia Ocidental, que Eça, nesse romance, longe de se ater a uma conceção retrógrada e passadista, antecipava críticas que o futuro viria trazer ao nosso modelo de civilização. Diplomata e escritor