Eutanásia: as instituições a funcionar
O tema da eutanásia é disruptivo, complexo e polémico. Mexe com a vida e a morte, o que remete para as convicções mais profundas das pessoas, frequentemente para além do racional e tangível. Não é, por isso, de estranhar que o processo legislativo da sua legalização se arraste durante décadas, o que aconteceu em Portugal, tal como no passado na Espanha ou nos Países Baixos, para mencionar dois casos europeus.
A aprovação do diploma final que regula a morte medicamente assistida, na última sexta-feira, foi o corolário de uma maratona de 28 anos, que teve quatro textos, dois vetos e duas declarações de inconstitucionalidade. Apesar da sensibilidade do tema e de os grandes partidos democráticos terem determinado a liberdade de voto, a votação não deixou margem para dúvidas: 129 votos a favor e 81 votos contra.
Apesar das entorses de que a nossa democracia vai sofrendo, como referi na minha última crónica a respeito da contaminação que adultera algumas comissões parlamentares de inquérito, a lei da eutanásia reflete o bom funcionamento das instituições. É um caso exemplar do exercício da democracia e da observação da separação e interdependência estabelecidas na Constituição para os órgãos de soberania, neste caso a Assembleia da República, o Presidente da República e o Tribunal Constitucional.
No Parlamento, não surpreenderam os discursos inflamados de sexta-feira. Cada um dos deputados valorizava, como lhe competia, a sua visão, na certeza de que o diploma seria reconfirmado. A linha dos que defenderam a lei reafirmou a crença na concessão da liberdade individual na hora de escolher a forma de morrer, no quadro de uma condição de extremo sofrimento. Do lado dos que contrariaram a lei, os argumentos variaram entre os que exigiam uma consulta direta aos portugueses, através de referendo, e os que entendem que a alternativa à facilitação da morte é a criação de condições para um final de vida mais digno.
O órgão legislativo funcionou, tomando, em devido momento, nota das sugestões, propostas e decisões do Presidente da República e do Tribunal Constitucional. A confirmação do texto, depois do último veto presidencial, não configura qualquer conflito institucional, devendo antes ser olhada com a normalidade de uma democracia a funcionar em pleno.
Marcelo Rebelo de Sousa esteve sempre bem neste processo. Fez saber da sua opinião sobre o tema, exerceu o seu poder de solicitar a fiscalização preventiva de constitucionalidade e exerceu igualmente o poder de veto. Estas são as válvulas de escape previstas na Constituição e estão lá para ser usadas. Agora que o Parlamento reconfirmou o texto da lei e que o Presidente esgotou a sua capacidade de veto, veio a terreiro dizer o que se espera dele: jurou cumprir todos os artigos da Constituição, pelo que promulgará o diploma.
O PSD, por sua vez, fez saber que um conjunto dos seus deputados solicitará a fiscalização sucessiva da constitucionalidade. Por muito que isso desagrade aos defensores da lei, este é um direito que lhes assiste e que tem de ser olhado com normalidade. É assim o funcionamento da democracia. Esteve duplamente bem Luís Montenegro, porque terá também vedado o pedido ao Chega, que procurou de imediato empoleirar-se na iniciativa do PSD, no seu habitual registo oportunista. O comportamento do clube Ventura neste processo tem sido, como já nos habituou, a nódoa negra parlamentar, pois é longo o chorrilho de manobras dilatórias. E, como o jogo democrático não é o seu, já prometeu que vai continuar.
Professor catedrático