Europa e Paz. Oito décadas e três momentos
Há quase oito décadas, a Europa emergia, com graus de destruição avassaladores, de uma guerra mundial, a segunda num mesmo século, separadas por escassos vinte anos.
Nestas quase oito décadas, desde então, a Europa conheceu três distintos momentos face à paz, esse celebrado acquis da esforçada vitória das forças aliadas (democráticas) sobre as potências do eixo (totalitárias).
No primeiro momento, de 1945 a 1989, a Europa viveu o tempo de Construir a Paz.
No rescaldo de um conflito terrível, incluindo um genocídio de inauditas dimensões, pouco subsequente ao anterior conflito, ilusoriamente chamado de a guerra para acabar com a guerra (the war to end war) por H. G. Wells, a Europa – destruída e com milhões de mortos, feridos e refugiados – precisou de se reencontrar, de se reconstruir, de encontrar nova forma de se dizer.
Foi o início da chamada construção europeia, do início da integração económica com a CECA, depois a CEE e a CEEA (Euratom), sob os auspícios de políticos visionários, os chamados de pais fundadores da Europa, numa virtuosa conjugação convergente de duas grandes famílias políticas, a democracia-cristã e a social-democracia (ou socialismo democrático).
Mas foi também o início da clivagem europeia, sob a cortina de ferro que dividia o continente em dois de norte a sul, cada lado construindo a paz segundo modelo diverso: a ocidente o da democracia e integração económica, a leste o da repressão e subjugação político-militar.
Fortemente apoiada pelo aliado transatlântico, inicialmente através do Plano Marshall, mas ao longo de décadas, a Europa podia voltar a colocar manteiga na mesa dos seus cidadãos enquanto o amigo americano garantia os necessários canhões que sustinham o delicado equilíbrio da guerra fria. E, assim, se construiu a paz…
Foram os trinta gloriosos anos, de prosperidade económica, que viriam a ser abalados pelos choques petrolíferos dos anos setenta, nos quais a Europa ocidental se reergueu das cinzas, viu a democracia consolidar-se e chegar onde ainda tardava (Grécia, Portugal e Espanha), edificou o modelo social europeu, viu desmembrarem-se – por assumido anacronismo, mas nem sempre de forma pacífica – os seus impérios ultramarinos, viveu a revolução dos costumes nos idos de maio de 68.
A paz – do lado ocidental – fora construída, bem alicerçada e consolidada, mas vivia-se paredes meias com a permanente ameaça.
Se de um lado da cortina o modelo político democrático consolidava-se e o modelo económico expandia-se rumo a um mercado único, já se vislumbrando a possibilidade de um dia se alcançar mesmo uma moeda única, do outro lado o modelo político-económico titubeava a passos largos ao longo dos anos oitenta, erodindo-se. Grandes mudanças anunciavam-se.
No segundo momento, de 1989 a 2022, a Europa viveu o tempo de Viver a Paz.
Em novembro de 1989, o Muro de Berlim, edificado em 1961, símbolo supremo de uma Europa rasgada em dois, fruto da geopolítica saída de Yalta, é derrubado. Nos meses anteriores e subsequentes, os regimes caem em sucessivos países do bloco de leste, as fronteiras abrem-se, as populações circulam.
Nos anos seguintes, com o fim– a própria URSS implode em 1991 – do poderio soviético, a democracia é implementada em diversos estados, as relações económicas e culturais restabelecem-se, a pessoas e ideias circulam. A Alemanha reunificou-se em 1990 e a União Europeia, nas décadas seguintes, alargou-se até às fronteiras da antiga URSS. A prosperidade que o ocidente já há muito descobrira alastrava-se agora a toda a Europa, já sem os temores de ameaças vizinhas, reposicionando a Europa num mundo globalizado com uma renovada autoestima e ímpar coesão interna, algo nunca visto em milénios de história. Parecia o fim da história, o fim dos tempos…
Nada fazia temer o equilíbrio encontrado, nem os conflitos internos (porventura menorizados) da Bósnia e do Kosovo, mais uma vez resolvidos com o paternal apoio do amigo americano.
Viviam-se tempos de apaziguamento, de prosperidade (já até com uma moeda única muito difundida e cotejante com o dólar norte-americano, a divisa do pós-guerra), de prescindibilidade de canhões, de crescentemente intrincado relacionamento económico-comercial com um mundo aberto e global.
Apaziguamento e prosperidade que até permitiram o enfado político conducente ao Brexit.
Com crises e achaques, até uma pandemia global, que o sistema – crescentemente burocratizado – ia resolvendo com diversas escalas de sucesso, a Europa desfrutava de uma paz e abundância ímpares na história, quase que realizando o sonho kantiano da paz perpétua.
E eis que, ao arrepio de previsões, quando tudo já o anunciava, tudo muda, tudo se transforma…
No terceiro momento, iniciado em 2022 e que hoje atualmente vivemos e sentimos, a Europa vive o tempo de Preservar a Paz.
Em fevereiro de 2022, a Federação Russa invadiu a vizinha Ucrânia (oito anos antes já lhe tinha anexado a Crimeia, algo que a Europa – pouco dada a embaraços extramuros – preferiu ignorar; era um assunto deles…).
Pela primeira vez, desde 1945, a Europa sentiu – e os países mais a leste sentem-no mais dermicamente – que a paz não era realidade perpétua, que a sombra da guerra não desaparecera da história.
Tal aconteceu no rescaldo de uma pandemia global que mostrara já a fragilidade logística da prosperidade europeia, com o interrompimento prolongado das cadeias de abastecimento globais. Sucessivos engasgues dos mais frequentados canais marítimos têm igualmente afetado o regular funcionamento da economia europeia. Tudo isto majorado com a imposição de sanções económicas à Rússia e apoiantes, interrompendo fornecimentos energéticos e alimentares cruciais, trazendo a inflação – algo que a Europa esquecera rapidamente – de novo aos bolsos dos cidadãos.
Com a emergência de novas potências e alianças, multipolarizando o mundo, a globalização fragmenta-se e laivos de protecionismo erguem-se em diversos panoramas. A Europa, dependente de cenários distantes face a tantos produtos, desde semicondutores a princípios ativos farmacêuticos, e não se trata apenas de recursos naturais (esses por natureza geolocalizados), essa já fala de restabelecer uma autonomia estratégica.
A ameaça de retração do tradicional, e dado por garantido, amigo americano da defesa europeia fez soar alarmes de quem sempre menorizou o investimento em canhões. A norte, há quem já tenha desistido da tradicional neutralidade, pois os tempos não estão para meias-tintas, e tenha vindo engrossar o pelotão da NATO. O regresso da conscrição é hoje agenda em diversos estados, tendo alguns já dado passos nesse sentido.
Preservar a paz é hoje uma prioridade incontornável. Os estados, os governos e os cidadãos têm de o ter bem presente e têm de se encontrar alinhados neste propósito.
Reza o milenar livro do Eclesiastes que para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu (Ecl 3, 1); também para a paz na Europa o há e o tempo hoje é o de a preservar. Tal exige lucidez, determinação e investimento.
Para que não venhamos a conhecer um quarto período, o da paz perdida…
Economista
Vice-presidente do Conselho Português do Movimento Europeu