Europa: desdramatizar e combater os amigos da onça

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A diplomacia tem andado num frenesim nas últimas duas semanas. As ameaças russas foram levadas a sério e de repente todos na Europa e nos Estados Unidos acharam que seria indispensável falar com Vladimir Putin e também com Volodymyr Zelensky. E estes têm-se prestado ao jogo. Ainda há dias, Viktor Orbán esteve em Moscovo, e Boris Johnson em Kiev. À primeira vista, uma resposta enérgica às ameaças desencadeou uma série de iniciativas diplomáticas. As partes continuam a percorrer a via negocial, mesmo reconhecendo a ausência de progresso. Isso, só por si, e apesar do reforço das posições militares, que não tem conhecido tréguas, é positivo. A probabilidade de uma confrontação militar não deixou de existir, permanece aliás muito alta, mas já não é a única alternativa.

Ninguém tentou facilitar um contacto direto entre os principais interessados. Ora, seria importante que Putin e Zelensky se falassem diretamente. Mesmo tendo presente que a questão de fundo é muito maior do que a disputa entre a Rússia e a Ucrânia. A resolução pacífica de conflitos é sempre feita por partes, passo a passo, como quem resolve um puzzle. Começar pela aplicação do acordo de Normandia - que tem como objetivo o restabelecimento da paz nas zonas rebeldes do leste ucraniano - seria um grande passo no sentido certo.

Falta alguém que consiga fazer a ponte e a mediação entre os presidentes vizinhos. Infelizmente não vejo, na Europa ou numa organização internacional, muitos que o possam fazer. Mediação e prevenção de conflitos são duas áreas das relações internacionais particularmente difíceis. Assim o apreendi ao longo de décadas de prática. Exigem intermediários com grande autoridade moral, coragem pessoal, influência política e uma estrutura credível que os apoie. Neste momento, personalidades assim são aves raras, pois as organizações e os sistemas políticos foram ocupados por nacionalistas ou, então, por distintos moços de recados e outros oportunistas. Neste momento, com a exceção que Emmanuel Macron possa ser, a Europa está sem protagonistas capazes de se projetar para além das suas fronteiras nacionais.

Viktor Orbán também anda muito mexido na cena europeia, mas por razões meramente domésticas. A Hungria tem eleições legislativas marcadas para 3 de abril. Se não houver fraude - e aqui há um grande "se" -, Orbán poderá perder a batalha do voto popular. Por isso, garantir a seriedade desse ato eleitoral é especialmente importante para os que acreditam numa Europa democrática. O atual primeiro-ministro húngaro é de facto uma força negativa no panorama europeu. Entretanto, e antes da visita a Moscovo, Orbán esteve em Madrid, no fim de semana passado, para participar num novo encontro dos partidos ultraconservadores, neofascistas e ultranacionalistas da UE.

Foi uma reunião organizada pelo partido espanhol da extrema-direita Vox. O tema era "defender a Europa". Curiosamente, só depois de muita insistência por parte do primeiro-ministro polaco é que os participantes incluíram no comunicado final uma referência à atual postura agressiva do Kremlin e ao perigo que isso representa para a paz na Europa. Mesmo assim, Marine Le Pen, quando publicou o comunicado no seu site de propaganda pessoal, suprimiu gentilmente essa referência às movimentações russas. Provou assim, mais uma vez, que Putin pode contar com a benevolência de certos grupos neofascistas e xenófobos europeus. E com Viktor Orbán, no seio da UE. E todos estes, reciprocamente, com o seu apoio, pilim e mais gás a preço de correligionário.

Putin também pode contar com um ou outro comentador que acha ser de bom-tom e progressista servir de câmara de eco à propaganda e às falsidades que o Kremlin põe a circular. Trata-se, nalguns casos, de intelectuais que fizeram a sua formação ideológica no quadro da Guerra Fria. Para outros, é apenas uma maneira de tentar mostrar que são mais espertos e que compreendem como ninguém a estratégia em jogo. Em ambos os casos, embora não sejam parentes políticos de Le Pen ou de Orbán, na prática acabam por fazer um serviço idêntico.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral adjunto da ONU

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