Eu, um estranho em mim

Publicado a
Atualizado a

Podemos passar uma vida inteira sem sentirmos um profundo desamparo psicológico. As mágoas da vida, as dores, a tristeza, as metas alcançadas, e as alegrias, conjugam-se como dimensões diferentes de um mesmo caminho percorrido ao longo da vida. E com naturalidade. Também é comum acontecerem duas situações: algo se vai instalando silenciosamente, sem nos apercebemos ou sem darmos conta do seu real significado, até atingirmos um limite das nossas forças; ou, de forma muito repentina, sentimos que o nosso mundo como o conhecemos, desmoronou-se.

Estes dois enquadramentos podem descrever de forma muito genérica, como é que muitas pessoas, acabam por se sentir desamparadas, ou mesmo, entrarem num lugar de desesperança. E, não raras vezes nestas alturas, há uma afirmação que acaba por ser verbalizada: não compreendo o que se passa comigo. Uma declaração, uma afirmação que acarreta, sobretudo, muitas perguntas.

É da ordem da estranheza, estar em mim, reconhecer-me e, simultaneamente, sentir que os meus recursos não são os mesmos; ou que não consigo lidar da mesma forma, como conseguia, com as pessoas das minhas relações mais próximas; ou que adoto comportamentos que habitualmente não tinha; ou ainda, que sinto que o meu corpo não reage como habitualmente. Eu, um estranho em mim.

Surgem então várias perguntas: mas porque é que eu me senti capaz toda a vida e agora não? Mas é agora, aos 45 anos (sim, estas interrogações surgem muitas vezes após alcançada a maturidade de vida), que não consigo lidar com as coisas? Nunca vivi nada assim, o que se passa comigo? Uma forma, simples, de explicarmos por que razão as pessoas entram em sofrimento psicológico, é quando estas sentem que os pontos de referência que tinham para si mesmas deixaram de funcionar. O que são os nossos pontos de referência? Um conjunto de convicções e de crenças, que todos temos e que nos organizam, em relação a nós mesmos, em relação aos outros, e ao mundo. As nossas crenças, entendimentos, valores, são uma espécie de GPS que nos guia perante o terreno, por vezes ardiloso, da vida. Este conjunto de entendimentos foi construído por nós ao longo da nossa vida, com influência do contexto relacional mais próximo, e pelas condições ambientais e culturais. Quando as nossas convicções funcionam, em dor ou em alegria, conduzimos a nossa vida. São organizadoras, porque nos informam como nos comportar, e também porque nos dão algo essencial: sentido. E quando não funcionam? Sentimos que perdemos a nossa auto eficácia. E assim perdemos contacto com aspetos essenciais: segurança, confiança, sensação de qual o caminho a percorrer. Na falta destes, perdemos a esperança. O que antes era sentido como claro e evidente, torna-se agora num novelo de confusões, que conduz a um sentimento de estar perdido em terras desconhecidas.

A vida é muito dinâmica. O jogo permanente que ocorre, entre os acontecimentos da minha história e as minhas crenças, não garante que estas últimas funcionem sempre de forma eficaz. É da ordem do natural que, mesmo em fase avançada de vida, eu possa sentir que os meus pontos de referência, que sempre conheci e me deram segurança, percam essa capacidade de organizar o meu mundo. É natural, mas quando acontece, estranho e assustador. Pode ser nestes momentos que precisamos de alguns elementos essenciais para restabelecer a ordem das coisas. Quando encontramos um lugar que nos proporciona segurança, uma conexão humana, emocionalmente vivida, e que faculta a empatia e a escuta sem julgamento, lançamos as sementes fundamentais para que a pessoa se possa restabelecer. De forma muito comum, e este é um aspeto crucial, a reformulação e o repor da ordem das coisas, de nós mesmos, ocorre pela ativação de recursos, cognitivos e emocionais, que são nossos. E voltamos a encontrar equilíbrio, quando repomos os nossos pontos de referência. Ora com novas respostas, ora com respostas adaptadas.

Diretor Clínica ISPA

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt