“Eu não sou boa a arranjar pais”
Esta frase horrível e dilacerante foi-me dita por uma adolescente. Negligenciada pelos pais em criança, em acolhimento residencial durante alguns anos e, mais recentemente, sexualmente abusada por parte da família de acolhimento, encontra-se agora, de novo, acolhida. Falamos de uma trajetória de vida repleta de eventos traumáticos em que - podemos afirmá-lo sem rodeios - falhámos todos enquanto comunidade e enquanto sistema profissional.
Para esta adolescente, tal como para tantas outras crianças e jovens que vivenciam este tipo de situações, a culpa é sua. Toda sua. Foi ela que não soube cativar os pais ao ponto de estes a tratarem com cuidado e amor. Foi ela que pediu aos técnicos que lhe arranjassem uma família e, por esse motivo, encaminhada para pais de acolhimento. Foi ela que, provavelmente, se portou mal e não correspondeu às expectativas dos novos pais e, por esse motivo, foi maltratada. É dela também a culpa por estar agora novamente acolhida, triste, sem amigos e a sentir-se diferente e gozada por parte dos seus pares. A culpa é toda sua.
As crianças e adolescentes maltratados e cujos direitos não são respeitados pensam, regra geral, que a culpa é sua.
E o que sabemos nós sobre a culpa? Sabemos que é uma emoção corrosiva à qual se associa, geralmente, a expectativa de algum tipo de punição ou consequência negativa. É também uma emoção particularmente destruidora da autoestima quando se associam as situações negativas ocorridas com a pessoa, e não com o seu comportamento ou com as circunstâncias envolventes.
Quando uma criança ou jovem se sente inundado de culpa, é a si, enquanto pessoa, que habitualmente atribui a total responsabilidade pelos eventos vividos. Muitas vezes porque, ao longo do seu percurso de desenvolvimento, ouviu coisas como, por exemplo, “tu és sempre a mesma coisa, não vales nada”, “nunca serás ninguém na vida” ou “és um mentiroso e um preguiçoso”.
Desconstruir o sentimento de culpa não é fácil, nem rápido. Exige paciência e um forte investimento emocional por parte de todos os adultos que rodeiam estas crianças. Exige ainda ponderação e cuidado naquilo que é dito, tentando reforçar a ideia de que “a culpa não é tua” e que, mesmo quando exibem comportamentos desajustados, isso não as transforma em “más pessoas”. É preciso diferenciar o fazer e o ser.
Não são as crianças que não são boas a arranjar pais.
São os pais que não são suficientemente bons a cuidar das crianças.