Eu e tu no papel de vilão
Já sabíamos da vulnerabilidade dos países pobres às mudanças climáticas, mas a onda de calor no Canadá, a seca e a vaga de incêndios na Califórnia ou as catastróficas inundações na Alemanha, na Bélgica e na Holanda revelam que ninguém está a salvo dos maus humores da natureza. Os seus efeitos atingem a América mais rica e o próprio coração da Europa mais desenvolvida, com um balanço trágico em mortos e devastação.
Os efeitos das mudanças climáticas não se limitam a tornar os lugares secos mais áridos ou a causar mais tempestades onde elas já costumavam ocorrer. O que é alarmante, agora, é a aceleração desses fenómenos e a violência como desabam sobre a descuidada ação humana. É urgente reagir e prevenir, porque toda a evidência científica sobre os tresloucados caprichos da natureza coloca o homem no papel de vilão.
À nossa escala, as recentes decisões de Bruxelas parecem ir no bom sentido, com a aprovação de mais de uma dezena de projetos legislativos que visam revolucionar o nosso modo de viver, trabalhar, consumir, viajar e produzir. O grande salto social e tecnológico acontecerá, entre outras coisas, ao multiplicar por dois a quota das energias renováveis na União Europeia, ao colocar fora de circulação os veículos mais poluentes, ao penalizar edifícios (incluindo casas comuns) que não limitam as suas emissões de dióxido de carbono e, entre outras medidas previstas, encarecer as importações de países que não cooperam no combate às mudanças climáticas. Em forma de compromisso, as novas normas que a Comissão Europeia quer estender a toda a União visam transformar o espaço comunitário e alcançar um modelo de economia livre dos combustíveis fósseis que a alimentaram desde a Revolução Industrial e das emissões que sobreaquecem o planeta que tripulamos. Logo que acolhidas, Estado a Estado, tais regras serão obrigatórias em toda a União Europeia. Mas os seus efeitos irão muito além das fronteiras dos Vinte e Sete. Um dos exemplos mais óbvios é a proibição da venda de automóveis novos com motores de combustão, a partir de 2035, forçando os fabricantes a transformar os seus modelos em veículos elétricos.
As medidas propostas por Bruxelas vão implicar um agravamento do custo das formas mais poluentes de produzir energia ou forçar a transição para alternativas mais limpas, como as energias renováveis ou a mobilidade elétrica. São, em geral, mudanças justas, mas suscetíveis de gerar problemas como os que Portugal e outros países europeus já enfrentam, em virtude do aumento dos preços da eletricidade que ainda não é produzida com base em fontes consideradas limpas. Resta saber se o fundo social de 72 mil milhões de euros agora proposto pela Comissão Europeia serve para compensar o provável aumento dos preços da energia e evitar impactos sociais negativos. A carestia sem medidas de compensação para os setores mais vulneráveis da sociedade será, decerto, alimento para radicalismos e, pior, retarda a luta essencial e urgente contra a crise climática. A negociação para a aprovação final do plano será difícil, e adivinham-se fortes as resistências de alguns Estados. Mas é do interesse da União não retardar o caminho, por razões ambientais e também porque a liderança neste setor trará dividendos estratégicos. Também ajudaria se assumíssemos que a empreitada, antes de europeia, é de cidadania, dos governos, dos municípios e de cada um de nós.
Jornalista