Está a apagar-se o principal farol da democracia
O excelente filme A Complete Unknown do realizador James Mangol, atualmente em cena, mostra-nos um Bob Dylan símbolo de uns Estados Unidos em extinção. Poeta, compositor, Dylan é a marca de uma América generosa e lutadora que nos anos 60 se organizava na defesa dos direitos dos cidadãos negros e dos mais desfavorecidos.
No filme, Dylan percorre as longas estradas de horizontes longínquos da América numa velha mota, viola a tiracolo, a transportar mensagens de defesa dos mais desvalidos. É o tempo norte-americano do sonho de Martin Luther King, “I have a dream”, no Lincoln Memorial, a 28 de agosto, no já longínquo ano de 1963. Na atualidade de então estavam realidades tão elementares como o direito dos cidadãos negros a partilharem o espaço dos brancos, fosse nas escolas ou nos transportes públicos. No Festival de Newport, em Fort Adams, juntavam-se nomes da música folk e uma juventude generosa que procurava a defesa dos mais genuínos valores éticos da Humanidade.
As contradições estavam presentes, como sempre aconteceu naquele país. A Guerra do Vietname gerava gigantescas manifestações contra e as marchas pelo emprego e liberdade eram frequentes. J.F. Kennedy havia de ser assassinado em condições nunca completamente esclarecidas, depois de um combate à poderosa máfia norte-americana. Dylan e Joan Baez juntavam as vozes em torno de uma juventude que contestava uma América egoísta, individualista. As suas canções eram hinos à solidariedade e à compaixão humana pelos mais fracos e mais necessitados. Woodstock era um encontro de protesto sob a forma de música, enquanto Jack Kerouac e Alen Gingsberg, escritores da Beat Generation, nos traziam notícias das cidades percorridas pelas motos de Easy Ryder, onde pontificaram Peter Fonda e Dennis Hopper no cinema de então.
Sim, é verdade, há, seguramente, quem sinta falta dessa América sempre, sociologicamente, desigual, mas viva, atenta e combativa.
Ao olharmos hoje para os Estados Unidos tudo isso morreu na massa humana indistinta, alguma jovem, alienada em torno das redes sociais. É um TikTok que transforma jovens em eunucos culturais num exercício digital de ignorância e indiferença.
Trump representa, hoje, o que de pior existe na América, um capitalismo selvagem e desumano onde as populações parecem reduzir-se a meras estatísticas financeiras. As tarifas aduaneiras são ferramenta de pressão internacional ao serviço de uma nova forma de opressão sobre os países mais fracos. A falta de sentido humanista de Trump e dos seus acólitos é patente nas decisões de deixarem, ao Deus dará, as populações mais desfavorecidas e pobres do mundo. O abandono sem aviso prévio da USAID, agência responsável por cerca de 40 % da ajuda humanitária, é o que de pior se pode encontrar na condição humana. Os Estados Unidos vão, assim, perdendo a sua qualificação de referência mundial democrática para se transformarem num qualquer gigantesco gabinete contabilístico, onde prevalece a ditadura do deve e do haver, sem atenção às consequências sociais das medidas que toma.
Da lógica da defesa dos Direitos Humanos dos mais desfavorecidos e dos negros, a América transfigurou-se nos exercícios de deportação de cidadãos, acorrentados como se de simples criminosos se tratassem. É a imagem mundial e a prática de uma potência que muda, perante a estupefação do mundo. É a ciência e a saúde norte-americanas, mas também do resto do planeta, que fica em risco pela ignorância de Robert Kennedy, apontado para aquela pasta, e defensor de posições de recusa de vacinação, mesmo para as crianças.
Desaparece, assim, a memória anterior de uma América onde, apesar das contradições, havia fortes sinais sociológicos de humanismo, sensibilidade e preocupação pelo outro. Trump, Musk e companhia, estão a trazer à América o que de mais bárbaro e retrógrado pode acontecer a uma civilização, ainda que isso seja feito sob a capa de conquistas espaciais e um falso desenvolvimento tecnológico. A América está mais insensível e, socialmente, indiferente. A guerra é o discurso do dia a dia e a estúpida proposta de deslocação de milhões de seres humanos, como Trump quer fazer em Gaza, é recebida com espanto e indignação.
É um protofascismo que, paulatinamente, se vai instalando nos Estados Unidos. Escasseia a decência e, desta maneira, vai-se apagando a chama de um dos principais faróis da democracia Ocidental.
Jornalista