Estado de "mediocridade" constitucional

Volvidos dois anos de pandemia, estamos exatamente onde estávamos no plano das leis que um Estado de Direito Democrático pede aos seus governantes, em ordem a melhor proteger os cidadãos, no ambiente próprio deste período de crise.

Porém, e entretanto, houve oportunidade para aprovar as mais "desvairadas medidas", e não se parou um segundo para cuidar do mais importante: corrigir um regime jurídico que não está preparado para responder aos desafios que esta pandemia colocou e coloca.

Este está longe de ser um tema de especialistas, uma vez que é assunto central na nossa cidadania: saber em que termos e condições os nossos direitos fundamentais podem ser limitados.

O "grau zero" do mérito do comportamento dos responsáveis políticos tem muitas chavetas e começa por não se ter feito uma "cirúrgica" revisão constitucional, ao menos para atribuir à Comissão Permanente da Assembleia da República competências legislativas extraordinárias, que continua a não ter.

Por azar, com a recente dissolução do Parlamento, criou-se um enorme "vazio legislativo", que pode ser confrontado com necessidades imprevistas de legislação a que o Parlamento, por não estar a funcionar, não poderá acorrer.

Pior do que tudo isto, é a situação perigosa de ter havido dissolução parlamentar sem a simultânea demissão do Governo, com o que este se tornaria um governo com poderes limitados de gestão.
É verdade que se pode sustentar que a dissolução implica automaticamente a demissão do Governo, como têm defendido vários constitucionalistas nos seus escritos, além de mim próprio: Jorge Miranda, Gomes Canotilho e Vital Moreira, mesmo que, por momentos, se defenda o contrário do que escreveu.

Só que num assunto desta gravidade não se pode cair em "academismos" e, por via das dúvidas, impunha-se um decreto presidencial adstringindo o Governo à prática dos atos de gestão corrente.
Qual a razão de ser deste mecanismo, o qual não vai bulir com as medidas de combate ao recrudescimento da pandemia?

A razão de ser é simples: evitar um excessivo poder de um Governo que fica "sozinho em casa", com a agravante de ter uma mera maioria relativa e sem sequer possuir um acordo de incidência parlamentar.

O cenário é tanto mais preocupante quanto é certo os partidos políticos - que se comportam como partidos "clientelares ávidos de alimento", com a procura constante de "lugares" e de "contratos" - nunca perderem a ocasião para tratarem dos seus arranjos de última hora, ora aproveitando-se da distração de uma campanha política que está focada nos novos protagonistas, ora neste tempo especial até invocando os argumentos da crise pandémica que nos assola.

O ideal da maturidade democrática que Portugal merece teria sido que o Governo apresentasse a sua demissão, como sucedeu no passado recente, até por um respeito elementar que a proeminência do Parlamento dita.

Ao invés, há umas confusas declarações políticas de autocontenção, que exprimem uma boa vontade do tamanho do Mundo, mas que não são precisas, nem mesmo se entende a que setores se aplicam.
Tudo isto simultaneamente que o Governo não desiste de aprovar diplomas que estão muito para lá dessa autocontenção legislativa, como é o caso do novo regime de contratação endogâmica de docentes do ensino superior.

Pior do que o estado de calamidade que foi agora decretado, ou o estado de emergência que virá a breve trecho, é o estado de "mediocridade" constitucional em que se tem atolado boa parte da classe político-representativa da III República, cujos sinais são evidentes, e cujos erros se repetem ad nauseam.


Professor catedrático e constitucionalista

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