"Espião" esquecido
Há poucos dias, The British Observer publicou uma entrevista com Nosrat Bazoft, mãe do falecido Farzad Bazoft, jornalista freelancer britânico do mesmo jornal, originário do Irão. Ele foi executado por enforcamento no Iraque em 15 de março de 1990, acusado de ser um espião israelita.
Bazoft foi visto no Iraque nas proximidades de uma fábrica de munições perto da cidade de Hilla, ao sul de Bagdad, após a grande explosão daquela fábrica. A mãe de Farzad fala sobre uma conspiração iraquiana para o trazer de volta ao país e prendê-lo por um motivo totalmente diferente. Segundo ela, Farzad Bazoft estava a investigar o Projeto Babilónia iraquiano, um supercanhão, que seria tão forte que poderia lançar um míssil balístico de altíssima força e capacidade para longas distâncias. Além disso, ela afirma que o governo britânico não fez o suficiente para salvar o seu filho da execução, com base na falsa acusação de espionagem para Israel.
Na época em que Farzad Bazoft estava no Iraque, eu também lá estava e trabalhava na Embaixada da Jugoslávia em Bagdad como cônsul. Era um corpo diplomático muito ativo, tendo em vista que não nos encontrávamos com os iraquianos com muita frequência e que vivíamos todos como numa gaiola dourada, conhecendo-nos muito bem. A situação extraordinária durante e após a guerra Irão-Iraque e a ocupação do Kuwait, fez que todos os membros do grupo diplomático estivessem constantemente juntos, encontrando-se quase todos os dias e conversando abertamente sobre a situação no país. Claro, não estávamos todos na mesma posição, porque os nossos países não tinham as mesmas relações com o Iraque naquela época. A Jugoslávia, por exemplo, estava envolvida em muitos projetos de construção, com grande número de trabalhadores, e isso fazia-me parecer um "diplomata bem informado" o que, claro, não era verdade o tempo todo. Mas, na diplomacia, é importante aquilo que parecemos e não tanto quem somos realmente.
A explosão na fábrica de munições em 19 de setembro de 1988 foi tão forte que todos nós a ouvimos em Bagdad, a quase 80 quilómetros do local. Em muito pouco tempo, também ficámos a saber o que era. Após o fim da guerra Irão-Iraque, havia um grupo de jornalistas estrangeiros na capital do Iraque, porque Bagdad estava a tentar não só normalizar, mas melhorar a sua relação com o Ocidente, acreditando que tinha ganho um crédito enorme por impedir o Irão de espalhar a sua ideologia para o golfo Pérsico. Pelo que se sabia, os jornalistas queriam fazer uma reportagem sobre a explosão, mas o governo decidiu ficar calado. Essa decisão foi entendida por muitos como o encobrimento de algo que estava a acontecer naquela fábrica de munições e levantou suspeitas principalmente na imprensa. Pelo que penso, Farzad Bazoft estava lá, vendo uma oportunidade muito boa para um artigo de investigação e decidiu ir para Hilla. Era óbvio que ninguém conseguiria chegar lá pelos canais normais, então ele usou uma enfermeira do hospital irlandês Park em Bagdad, Daphne Parish, para ir com ela, provavelmente no carro do hospital. Ele conseguiu chegar ao mesmo local, tirou algumas fotografias e, segundo informações, uma amostra de solo para fazer uma análise no Reino Unido. Mas, algum tempo depois, ele foi preso no Aeroporto Internacional de Bagdad, ao tentar deixar o país. Daphne também foi presa.
Fui rapidamente abordado por um diplomata britânico, pedindo-me que lhe contasse como era o funcionamento do Tribunal Revolucionário. Sabia-se que eu era provavelmente o único diplomata que tinha comparecido a um julgamento naquele tribunal especial e que poderia ter algum conhecimento sobre o sistema. A história era que o funcionário de uma empresa jugoslava, que trabalhava no Iraque como tradutor, entrou na alfândega da cidade e não saiu. Foi denunciado à embaixada e começámos a procurá-lo. Juntamente com a empresa, descobrimos que ele foi preso dentro do edifício por ter subornado um funcionário iraquiano, que também estava preso. O trabalhador jugoslavo era um palestino, que estudou na Jugoslávia, casou-se com a mulher jugoslava e tinha o nosso passaporte. Pedi imediatamente para me encontrar com o diretor-geral da Alfândega do Iraque, que me recebeu rapidamente (ele era um parente do número dois do Iraque, Izet Ibrahim, que morreu não há muito tempo como general num exército do Estado Islâmico). Informei-o sobre o caso e pedi para libertar o tradutor. Ele disse-me que não sabia nada sobre o caso (mais tarde descobri que antes do nosso encontro ele tinha estado a interrogar pessoalmente o homem) e que iria perguntar o que se passava. Além disso, ele perguntou-me porque estávamos tão preocupados com um palestino e eu tive de lhe explicar que, para nós, qualquer portador de passaporte jugoslavo tem direito à mesma proteção consular no exterior.
Depois de alguns dias, ele convidou-me para um almoço e informou-me que o tradutor jugoslavo seria julgado pelo Tribunal Revolucionário. Obtive da empresa jugoslava a informação sobre o dia e a hora do julgamento, que foi organizado em Abu Graib, uma famosa prisão em Bagdad. Fui lá e pedi aos polícias que me deixassem estar presente no julgamento. Primeiro, eles recusaram, depois voltaram com a aprovação, mas sem o meu tradutor. Aí, recusei-me a entrar e no final entrámos eu e o meu tradutor (ele só recebeu uma cadeira mais pequena do que a minha). Todos os juízes usavam uniformes militares, o nosso cidadão tinha um advogado iraquiano que tremia ao fazer a defesa. Então, o juiz presidente perguntou-me se eu queria dizer alguma coisa. Eu sabia que a corrupção era uma acusação extremamente perigosa e que a vida do tradutor poderia acabar ali. Perante a situação, era óbvio que qualquer intervenção declaradamente a favor do cidadão jugoslavo não o ajudaria em nada. Por isso, disse que agradecia ao juiz por me ter permitido estar presente e que tinha a certeza de que o tribunal iria proferir a sentença justa.
Os juízes saíram, voltaram e emitiram a sentença. O tradutor jugoslavo de origem palestina e o oficial da alfândega iraquiana foram libertados por falta de provas. E todos nós regressámos às nossas casas.
Eu contei ao diplomata britânico alguma coisa sobre o tribunal, avisando-o de que não havia semelhanças entre os dois casos. No nosso caso, a política estava a nosso favor e no deles estava contra eles. A verdade é que não foram muitas as pessoas que saíram vivas desse tipo de provação.
O caso Bazoft era totalmente diferente. Ele queria descobrir o que aconteceu em Hilla e tentou fazer algo que simplesmente não precisava de fazer. Os iraquianos acompanhavam de perto os jornalistas estrangeiros, assim como os diplomatas, e estávamos cientes disso desde o início.
Apenas um dia depois da explosão em setembro de 1989, havia dois motoristas de camião jugoslavos sentados no meu gabinete na embaixada, a contarem-me o que aconteceu. No momento da explosão, eles estavam no estacionamento da fábrica de Hilla. Segundo eles, tudo aconteceu por causa do mau armazenamento no exterior da fábrica das munições produzidas, quando o calor estava próximo dos 50 graus centígrados. Muitos trabalhadores morreram.
Farzad Bazoft foi executado em 15 de março de 1990, de acordo com algumas informações devido a uma ordem direta de Saddam Hussein. Naquela altura, ele já tinha a certeza de que o Ocidente não o ajudaria a reconstruir o Iraque, mas que continuaria a pressionar o seu país para que não se tornasse forte de mais. E, provavelmente, ele já teria a ideia de invadir o Kuwait, o que fez cinco meses depois.
Farzad Bazoft foi vítima da política do Médio Oriente. A enfermeira britânica Daphne Parish foi libertada da prisão iraquiana e enviada para o estrangeiro.
Apenas uma semana após a execução de Bazoft, o especialista canadiano em artilharia, Gerald Bull, autor do Projeto Babilónia (supercanhão), foi morto na Bélgica.
Investigador do ISCTE-IUL e antigo embaixador da Sérvia em Portugal