Escrever no verão
Ao ler durante este verão os diários de Mário Cláudio, lembrei-me dos pergaminhos ou papiros da Antiguidade, de onde nos surgem fragmentos dos poemas de Safo, das peças de Aristófanes ou dos tratados de Aristóteles, sem que possamos ter acesso à totalidade do texto original. Mas lembrei-me também de Ezra Pound, explicando a T.S. Eliot que o principal momento da escrita do poema está no cortá-lo, em expurgá-lo do que não faz falta, limpá-lo, enfim.
A escrita de Mário Cláudio, normalmente convulsa e barroca, aparece aqui limada até ao essencial, reduzida até ao osso. E as anotações mais simples do quotidiano são seguidas de sábios e subtis aforismos e as referências às árvores do jardim precedem, sem falsos pudores, os ecos da maledicência literária a que todos nos damos, mas que raramente expomos.
Aqui está um primeiro paradoxo deste Diário Incontínuo: o seu rigoroso e delicado pudor só é transgredido nesta rude franqueza de vir assumir aquilo que toda a gente da escrita sente, mas, por delicadeza ou hipocrisia, não diz. Humano, demasiado humano? Sim, mas tão verdadeiro...
As ilustrações do livro abrem perspetivas novas à nossa leitura, ajudando a imaginação a tornar figurativa a corrente do texto que atravessa. É que viajamos muito neste livro e em cada lugar vemos o autor lançar mais uma raiz à terra...
E assim vejo chegarem ao fim as minhas leituras de agosto, divididas entre os Camões de Isabel Rio Novo e de Frederico Lourenço e estes diários de Mário Cláudio, um rasgão nas páginas a fazer-nos entrever a vida e o percurso do seu autor. E a incitar-me a ler mais e melhor a sua obra.
A antologia de Camões, escolhida e anotada por Frederico Lourenço, mostra-nos a extraordinária cultura daquele homem, que conhecia a filosofia e a poesia greco-latinas tão bem e tão profundamente como as mulheres mais acessíveis dos “mal cozinhados” da noite de Lisboa. A subtileza da sua dialética amorosa vai muito além do seu inspirador Petrarca e abre caminhos novos a quem experimenta tais tormentosas delícias, pois “mais vale experimentá-lo que julgá-lo/ mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”.
O reencontro familiar, cada ano mais intenso, fez-me deixar as leituras sérias para estas últimas semanas de vilegiatura, em que só um dos filhos continua ainda connosco nos dias finais da praia. Setembro anuncia-se já, nas manhãs frias e nevoentas e nas tardes soalheiras de um suave calor, que não é já o calor triunfal e agressivo de agosto, mas o terno afago de um sol declinante.
Comigo é sempre isto, citando Mário Cláudio: “O tempo que se esfarrapa, se recompõe, se esgaça de novo, a culpa da ausência do trabalho diário” (Diário Incontínuo, p.177). Sim, neste verão pouco escrevi. Tenho dois livros prontos para os editores, mas um deles carece ainda de uma profunda revisão nas suas estruturas. Vagueio entre as ideias e as coisas, o estímulo do dia a dia e as notícias das guerras. Mas a ausência do trabalho diário de escrita (“nulla dies sine linea”, dizia Plínio o Velho) é pecha minha e por ela pagarei.
O consolo vem dos mesmos latinos, neste caso Horácio: “Carpe diem”. Não deixes escapar as réstias de sol que te aquecem e a algazarra dos filhos e dos netos que te consola. Escrever virá com as mudanças de estações. Resta-me, por enquanto, esta fidelidade semanal à minha crónica. Bom regresso de férias.