Ainda hoje recordo a sensação fria e estranha que sentia nos instantes iniciais em que me sentava nas bancadas de betão quer do antigo Estádio da Luz quer do antigo Estádio de Alvalade - frequentei ambos com assiduidade quando era criança, há uns 40 anos. Ao fim de uns largos minutos, o corpo habituava-se ao incómodo e à dureza, sem a tal “almofadinha” vendida à porta dos estádios, apregoada de forma sui generis. Isso tudo era esquecido à medida que a atenção ia para o que se passava nas quatro linhas, aqui ou ali distraída pelas bandeiras e fumos das claques e depois, no intervalo, desviada para o homem que vendia as pipocas cheias de corantes e tubos com queijadas de Sintra. Recordo dois jogos que me marcaram. Um em 1982, quando o Sporting foi campeão e no final do encontro os jogadores correram para o balneário a fugir da invasão de campo pacífica dos adeptos leoninos. Recordo a imagem esguia do saudoso guarda-redes Ferenc Meszaros a correr desalmadamente já só em cuecas. Festa rija, como se fazia nos anos 80.O outro jogo foi o da meia-final da então Taça dos Clubes Campeões Europeus - a atual Liga dos Campeões - num Estádio da Luz a abarrotar e certamente com uma assistência bem para lá dos 120 mil lugares oficiais. De tal forma que vi esse jogo em pé, encostado à base de um dos placards no topo do estádio. Nessa noite o Benfica venceu a equipa romena do Steaua de Bucareste com dois golos de Rui Águas. E contribuiu para os encarnados chegarem à final da competição, para jogar com os holandeses do PSV Eindhoven em Estugarda. O resto é história.Estes dois exemplos, um pouco saudosistas, admito, espelham uma época que não existe mais no futebol. Não era perfeita, era algo naïf, mas vivia-se o futebol de uma forma mais apaixonada e menos cínica. As conversas dos adeptos eram bem diferentes das de hoje. Falava-se do jogo, da tática, e as rivalidades eram mais saudáveis, apesar de bem fortes. Hoje, para quem gosta verdadeiramente de futebol, da bola, do jogo jogado, da tática em campo, não há altura mais irritante, quiçá frustrante, como a que vai da pré-época ao fecho do mercado de transferências de jogadores. E se o leitor for adepto de um dos clubes grandes, como o são a maioria dos portugueses, tem ao seu dispor nos vários canais de TV, nos jornais desportivos e generalistas (em papel ou nos sites) e até nas rádios meses a fio de notícias e comentários sobre as transferências. A partir de uma certa hora do dia, com repetição da temática com novos intervenientes umas horas mais tarde, o comentário futebolístico toma conta de vários canais de TV. Já o vemos como normal, mas nestes meses a temática dominante é mesmo as transferências com a esperança recorrente de ver grandes jogadores do futebol internacional chegarem, ou regressarem, a um dos três grandes. E fala-se muito de investimentos, do retorno financeiro, das percentagens das vendas, dos interesses de A ou B e demais palavras do léxico mais ligado à economia. É a economia, estúpido, poderá o leitor estar a pensar, ou ainda usar outro bordão atual: o futebol é um negócio! Sim, mas não. O futebol parece caminhar para uma pornografia de valores financeiros e começa a ser tratado com uma bolsa de valores. E isso, a meu ver, está a matar o futebol. A literacia futebolística, que outrora era dominante entre os adeptos, perde-se. É claro que é necessário evoluir, é claro que os clubes devem ser geridos de forma transparente e devem ter em conta que o público é hoje bem diferente daquele que enchia Alvalade e a Luz dos anos 80. Mas hoje vamos a alguns grandes estádios no meio de tanta música, tanta mensagem publicitária, luzes, fogo de artifício, dá a sensação de que o jogo jogado encaixa-se ali pelo meio. Lamento, o futebol não tem de ser como a NBA (que adoro), não precisamos de transformar este desporto num espetáculo de entretenimento com um jogo de futebol no meio. É preciso ser moderno, mas sem esquecer o que importa: a bola a rolar e os golos a entrarem nas balizas.Se calhar, em relação ao futebol estou a ficar uma espécie de “Velho do Restelo”, saudosista, incomodado com o andar da carruagem. Talvez. Mas o certo é que o negócio começa a refletir-se também para dentro do jogo. Recorde-se o último Europeu na Alemanha. Com excepção do futebol da seleção espanhola, a banalidade (e boçalidade) da maioria do futebol nos jogos a eliminar foi reinante. É pena. Vai afastar as novas gerações, pós-Cristiano Ronaldo, a geração TikTok , de saborearem um pouco do que é o espírito do verdadeiro futebol. Nesta tristeza, ou falta de adaptação, encontrei uma solução que partilho com os leitores. Sou adepto ferrenho de um dos grandes, mas isso não me impede de ir ver jogos de outro(s) em divisões inferiores. Os jogos da Liga 3 são um hino ao purismo futebolístico. O que se perde na falta de grandes craques dentro de campo ganha-se com o que se vive em redor. Famílias inteiras, sofredores crónicos, momentos ingénuos. E até o homem das queijadas ainda anda por lá. Apenas o frio do cimento foi substituído por bancos de plástico. Convido o leitor, adepto de futebol, a fazer o mesmo. É uma experiência fantástica que se torna um bálsamo para continuar a gostar do futebol, pelo menos no presente, já que o futuro ao dinheiro pertence.