Epopeias

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O mito da baleia branca, o cachalote assassino imortalizado no livro Moby Dick de Herman Melville, e depois no filme de John Huston, faz parte do imaginário coletivo, e não só na América. Mas há uma cidade da Costa Leste dos Estados Unidos que tem tanta ligação ao romance de Melville que decidiu encomendar uma estátua do escritor, um projeto que deu agora um passo importante com a aprovação do design, depois de um concurso público. Ora, e não por mera coincidência, essa cidade, New Bedford, tem uma numerosa comunidade portuguesa, sobretudo de origem açoriana, e há quem possa reivindicar descender desses marinheiros que chegaram à América ainda no século XIX a bordo dos navios baleeiros americanos.

O próprio Melville incluiu portugueses na tripulação do Pequod, o navio do capitão Ahab, homem obcecado com a baleia branca. O escritor, que foi marinheiro muitos anos, não só se cruzou com portugueses em muitas das terras por onde passou, como certamente terá convivido com alguns a bordo. Contudo, e isso torna ainda mais relevante a estátua numa terra tão cheia de imaginário português, Melville não só lidava com marinheiros portugueses como conhecia a história dos grandes navegadores dos séculos XV e XVI, a Era dos Descobrimentos. Num dos seus poemas há até referências a Vasco da Gama.

Mas aquilo que destaca Mário Avelar, especialista em Literatura Americana, numa entrevista esta quarta-feira ao DN, é que Melville também leu Os Lusíadas, numa tradução em inglês por William Mickle, um poeta escocês do século XVIII. Mais surpreendente ainda, o jovem Melville, nos tempos de aventura pelos mares, tomou conhecimento da epopeia através de, e cito Avelar, “Jack Chase, comandante da fragata United States, que Melville convocou em White-Jacket, e que tinha por hábito recitar Os Lusíadas em português aos seus camaradas”.

Há muitas histórias interessantes a ligar Portugal e os Estados Unidos, desde a descoberta da Califórnia por João Rodrigues Cabrilho até a participação de John Peters, ou João Pedro, na Boston Tea Party, o ponto de partida para a rebelião contra a Coroa Britânica. Também se costuma destacar Portugal ter sido o terceiro país a reconhecer a independência dos Estados Unidos. Mas um capitão de um navio americano a ler aos marinheiros Os Lusíadas é no mínimo poético. E o futuro autor de Moby Dick ter sido um dos que ouviu é extraordinário, permitindo especulações.

A epopeia celebrada em New Bedford com a estátua do escritor é a dos baleeiros. Um museu dos baleeiros é, aliás, um dos pontos de visita obrigatórios da cidade. Ouvir falar em português naquelas ruas é algo normal, e há uma escola que até ensina português a miúdos netos e bisnetos de portugueses, que querem aprender a língua dos antepassados. A presença na América é antiga, e, talvez também por isso, “o plano de Trump para deportar imigrantes indocumentados não irá atingir a comunidade portuguesa”, previa, também em conversa com o DN, há dias, Francisco Resendes, diretor do Portuguese Times, jornal em língua portuguesa com sede na cidade. Claro, a estátua de Melville que vem a caminho foi notícia no jornal.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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