Entre um janeiro e outro

Publicado a
Atualizado a

Que nunca mais aconteça”, disse o presidente da República. “Que nunca mais aconteça”, disse o presidente do Congresso. “Que nunca mais aconteça”, disse o presidente do Supremo. “Que nunca mais aconteça” foi a frase da semana passada no Brasil.

Em causa, os atos de vandalismo cometidos por apoiantes de Bolsonaro em Brasília, no 8 de janeiro de 2023, depois de dois meses de bloqueio de estradas, de protestos de rua, de acampamentos à porta de quartéis a pedir golpe militar e até do planeamento frustrado de um ataque com um carro bomba ao Aeroporto de Brasília na Véspera do Natal de 2022.
Os crimes são graves e merecem “punição exemplar do poder público”, como reforçaram aquelas autoridades - mas merecem, para “que nunca mais aconteça”, que o poder público, vítima e julgador neste caso, reflita sobre a origem deles.

O medo de o Brasil, com Lula, voltar a ser inclusivo explica o que moveu as cadeias de comando bolsonaristas. E a rede de mentiras repetidas incessantemente por aquelas aos ouvidos dos soldados mais rasos da seita explica o ódio destes.

Porém, no âmago, enquanto a distância entre o povo e os seus representantes não for suavizada, novos 8 de janeiro, estarão sempre iminentes - no Brasil e no mundo.

Essa distância começa por ser física, geográfica, literal mesmo em países minúsculos: o autor deste texto cresceu a menos de 100 metros da Assembleia da República, em Lisboa, e por isso não a entende - mas e o transmontano? E o faialense?

Agora transportemos essa distância para países continentais como os EUA, cujo 6/1 foi protagonizado por gente que vive em roulotes apodrecidas no interior do país e pisou a longínqua, em todos os sentidos, Washington DC, pela primeira vez naquele dia infame.
Ou para o Brasil, onde, só para dar um exemplo, as comunidades ribeirinhas de São Francisco do Mainã, no Amazonas, para chegar a Brasília demoram, na melhor das hipóteses, 51 horas.

Essas 51 horas são a tal distância física, geográfica e literal, mera metáfora para a distância, de anos-luz, económica, social e política entre os eleitores profundos e Brasília - a distância entre “o povo e a casta”, como sublinhou, com sucesso eleitoral, Javier Milei, na vizinha Argentina, porque, no fundo, a direita populista do século XXI só restaurou a agenda da velha esquerda do século XX.

Mas para que, no fim das contas, “nunca mais aconteça”, o que fez o poder público brasileiro, a tal “casta”, para atenuar a distância imoral entre ela e o povo? O que fez, além da “punição exemplar” aos vândalos, para sarar a onda antipolítica que germina Bolsonaros e demais aberrações, no intervalo entre os 8 de janeiro de 2023 e de 2024?

Eis dois exemplos, simbólicos, porque ocorridos às vésperas da “festa democrática” do 8 de janeiro de 2024, de que não fez quase nada.

O poder executivo destinou quase 180 milhões de euros para as campanhas eleitorais das municipais de outubro. Escandaloso, não? Pois o poder legislativo quintuplicou essa verba, para aproximadamente mil milhões de euros, numa emenda ao Orçamento. E, no poder judicial, uma juíza reformada recebeu de salário cerca de 180 mil euros por “reparação de férias não-gozadas” e pela “venda” - sim, é possível - “de dias de repouso remunerado não-usufruídos”.

Com estes exemplos, a distância entre a Praça dos Três Poderes e o Brasil profundo só cresce, assim como crescem os riscos de que novos 8 de janeiro voltem a acontecer.


Jornalista, correspondente em São Paulo

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt