Entre imagens. David Lynch ou a arte do invisível
Confirmando o empenho com que alguns distribuidores e exibidores da chamada área independente continuam a lidar com as memórias multifacetadas do cinema, o ano cinematográfico começou com uma temporada dedicada a David Lynch (que celebrará 79 anos no próximo dia 20). Assim, com chancela da Nitrato Filmes, surge o ciclo “Os enigmas de Lynch” em que vamos poder ver ou rever: Eraserhead: No Céu Tudo é Perfeito (1977), a sua primeira longa-metragem, O Homem Elefante (1980), Uma História Simples (1999), Mulholland Drive (2001) e Inland Empire (2006) - para já, em Lisboa (Nimas) e Porto (Trindade), depois com exibição alargada a outras cidades, até 26 de fevereiro.
O fascínio de Lynch começa na dificuldade de classificação da diversidade do seu labor. Inland Empire, quase a fazer 20 anos, é o seu mais recente trabalho “tradicional” para cinema, já que, depois disso, além dos muitos e variados vídeos publicados no YouTube, Lynch tem feito exposições, lançou uma continuação de Twin Peaks em televisão (Twin Peaks: The Return, 2017), filmou um concerto dos Duran Duran (Duran Duran: Unstaged, 2011) e concretizou vários projetos musicais, o mais recente dos quais o álbum Cellophane Memories, com a cantora Chrystabell, que surgiu no verão do ano que passou.
Há um persistente lugar-comum que tenta “encaixar” a obra de Lynch em padrões do cinema de terror. Trata-se de uma definição dificilmente sustentável em relação a modelos do cinema clássico, mesmo não esquecendo que Eraserhead se apresenta como um retrato da inusitada convivência do protagonista com algo de monstruoso, e totalmente inadequada face aos valores (ou à falta deles) que distinguem algumas formas contemporâneas do dito terror.
Aliás, este ciclo permite reencontrar dois filmes do mais fino classicismo: O Homem Elefante, em que o caso verídico de um homem tragicamente deformado se transfigura num drama subtil sobre Londres na época vitoriana, e Uma História Simples, centrado na odisseia, carregada de ternura, de um veterano da Segunda Guerra Mundial que faz uma longa viagem (de trator...) para uma visita de reconciliação com o seu irmão.
Nada disto, entenda-se, é estranho a uma desconcertante ambiguidade que talvez possamos resumir num aforismo “lynchiano”: os sinais imediatos do quotidiano convocam-nos sempre para algo que permanece invisível. Será preciso acrescentar que o cinema, nascido para lidar com o visível, superando a quietude da fotografia, enfrenta, assim, um fascinante desafio figurativo e filosófico?
Precisamente contra as vulgaridades de muito terror contemporâneo, o cinema de Lynch consegue a proeza singular de propor uma aproximação dos corpos e objetos com algo de realista, a partir daí sugerindo (ou melhor, mostrando) que qualquer contexto a que chamamos “real” é feito de infinitas camadas de impulsos imaginários que põem em causa qualquer ilusão de transparência. Será também preciso lembrar que, à sua maneira, a série televisiva Twin Peaks era uma metódica desmontagem das mentiras “naturalistas” que contaminam muitos aspetos do mundo da televisão?
Repito essa palavra: camadas. Observando estes (e outros) filmes de Lynch, podemos verificar que há nele um gosto de sobreposição das imagens - a chamada “fusão” de uma imagem noutra - que, afinal, paradoxalmente ou não, o aproxima de algumas linguagens clássicas. Mulholland Drive e Inland Empire são, nesse aspeto, dois prodigiosos exercícios que nos recordam tudo aquilo que pode haver de indecifrável nos comportamentos humanos. O medo que isso faz encontra o seu resgate na arte cinematográfica e na sua inclassificável beleza.