Entre a tragédia e a pantomima
Beijar ou não beijar, eis a questão que vários políticos britânicos discutiam na semana passada. Thérèse Coffey, ministra do trabalho e pensões, afirmou que "não deveria haver muitos beijos sob o visco" este Natal. O seu colega, Sajid Javid, não estava de acordo. "As pessoas podem beijar quem quiserem", disse o ministro de saúde, acrescentando que o facto de ele e a mulher ligarem os lábios constitui "uma tradição familiar". Obviamente, o elenco recebeu diferentes guiões.
No que respeita à pandemia, as últimas semanas têm sido difíceis, tanto para o mundo como para o governo do Reino Unido. A descoberta do variante do coronavírus nomeado pela décima quinta letra do alfabeto grego já provocou uma nova série de restrições nas fronteiras e pôs em dúvida um regresso à normalidade. Em entrevista ao Financial Times, Stéphane Bancel, diretor executivo de Moderna, sugeriu que as atuais vacinas serão muito menos eficazes contra o Ómicron. Neste país, o Daily Mirror revelou que uma festa teve lugar em Downing Street, a residência oficial do primeiro-ministro, a 18 de dezembro de 2020. Ou seja, na mesma altura em que os londrinos se encontravam sob os limites então mais fortes da epidemia e, por todo o país, milhares de pessoas morriam sem terem os familiares ao seu lado. No dia 19, Boris Johnson anunciou restrições ainda mais severas, anulando efetivamente as celebrações esperadas e organizadas por milhões de famílias após um ano tão ruim.
Até agora, os porta-vozes do governo têm afirmado que o primeiro-ministro não assistiu à festa, e que nenhuma regra foi quebrada (ainda que uma diretriz em vigor na altura proibisse festas de Natal nos locais de trabalho). Algumas pessoas até puseram em causa a escolha da palavra "festa" para descrever o que teve lugar. Mas o que é uma reunião à noite, antes de férias, onde há bebidas, canapés e jogos senão uma festa? Uma conferência? Um acontecimento?
Na BBC, uma representante de covid-19 Bereaved Families for Justice, um grupo composto por famílias enlutadas pelo vírus que exige um inquérito público sobre a (má) gestão da pandemia logo que possível, chamou a notícia "desconcertante", "insultuosa" e "repugnante". Por mais exasperante que seja a própria festa, ainda mais exasperante é o padrão de comportamento da parte do governo de que é representativa. Como temos visto ao longo dos últimos dezanove meses, a impressão de fair play, de que "ninguém está acima da lei", importa muitíssimo, e nessa ocasião o egoísmo ganhou.
Há apenas onze meses, morriam no Reino Unido milhares de pessoas todos os dias, e a chegada da Ómicron podia causar uma nova onda fatal, agravando a situação no já sobrecarregado sistema de saúde e a saúde mental da nação. Daí a razão pela qual foi acelerado o programa da terceira dose da vacina e reintroduzida a obrigatoriedade do uso da máscara em lojas e nos transportes públicos, algo que se tornara opcional no chamado "Dia de Liberdade" em julho. Muitos nunca deixaram de usar mas muitos outros sim, e entre estes, muitos não recomeçaram.
Exatamente um ano após esse "acontecimento", Boris Johnson no dia 18 terá de decidir se deveria cancelar um segundo Natal. Neste drama que não mostra sinais de fim e cujo público está cansado e zangado, deseja desempenhar o papel de herói muito mais do que vilão, mas a que custo?