Psicanalista escuta, no consultório, o que não cabe nas folhas de exame: angústias, sintomas e histórias de invisibilidade emocional em época de avaliação.O ritual invisível dos exames“Se eu não tiver 19, acabou-se… a minha vida acabou.” A frase é da Mariana, 17 anos, finalista do secundário. Disse-a com uma expressão tão séria que seria impossível tomá-la por exagero adolescente. Para ela — como para milhares de jovens nestas semanas de exames nacionais — o valor pessoal mede-se em pontos percentuais. No boletim de notas, lê-se não apenas o desempenho escolar, mas uma sentença sobre quem se é.Nesta época, as ruas ficam mais silenciosas, para uns, e mais ruidosas para outros: bibliotecas transformam-se em fortalezas de concentração; grupos de estudantes dividem-se, entre o estudo obsessivo, e a procrastinação angustiada. Para muitos jovens, esta é a primeira prova pública em que sentem que o seu valor — e, secretamente, a sua identidade — está em causa. A sociedade olha para eles como candidatos ao sucesso, ou ao fracasso, e essa expectativa, quando internalizada, pode tornar-se uma força psíquica avassaladora.Entre a nota e a identidadeA Psicanálise ensina-nos que aprender não é apenas acumular informação; é um processo de incorporação, transformação e ligação afetiva ao objeto de conhecimento. Ajuda-nos a perceber que aprender pode ser, ou como expandir um jardim interno, ou como encher um armazém fechado. No primeiro caso, o conhecimento cresce, liga-se, floresce. No segundo, acumula-se como tijolos: pesados, imóveis, sem vida própria. Muitos estudantes, pressionados por pais, escolas e por si próprios, vivem na lógica do armazém. E acabam a pensar que o seu valor reside no número de tijolos empilhados, esquecendo-se que podem construir com eles algo seu.Como nem todo o saber é assimilado como alimento vivo, muitos estudantes vivem o estudo como uma “injecção” de matéria: acumulam dados para o dia do exame, apenas para depois os “despejar” na folha de prova. Quando a aprendizagem é reduzida a performance, o prazer do saber é amputado. No consultório surgem muitas histórias assim. João, 18 anos, descreve-me o seu método de estudo: “É como encher um depósito. Vou despejar tudo no exame e depois… pronto, esvazia.” Quando lhe pergunto o que fica depois, hesita. Sorri, mas não responde. É o sorriso de quem sabe que, passados uns dias, não vai lembrar metade do que decorou. E sente, no fundo, que isso não interessa: o que conta é a nota, não o saber. No fim, o que resta não é conhecimento, mas cansaço e saturação, incapaz de criar a partir do que foi absorvido.Quando a escola repete a perdaPor de trás do insucesso escolar, ou da ansiedade de alto rendimento, há frequentemente uma história de relação. A escola, para alguns, é vivida como o prolongamento de uma perda primitiva: a ausência de um olhar cuidador, a sensação de abandono. Nestes casos, o professor pode ser, inconscientemente, associado a figuras internas persecutórias, ou indiferentes. Miguel associa a escola a perdas antigas. Para ele, cada exame traz de volta o dia em que a mãe o deixou à porta da primária, sem olhar para trás. “Senti que não voltava mais”, diz. Obviamente, a compreensibilidade da história não se resume a isto mas, desde então, a escola é, para ele, sinal de separação. Os exames, rituais de abandono. Assim, a ansiedade não vem só da matéria em si, mas de tudo o que ela representa no mundo interno. Observo, também, jovens que não “odeiam a matemática”, mas sim o que a matemática passou a representar: distância, frieza, comparação, inferioridade. A disciplina transforma-se, então, no rosto simbólico de um mal-estar mais antigo.Professores e pais: espelhos ansiososNão são apenas os alunos que projetam no Outro os seus conflitos internos. Os professores, a maior parte das vezes nada treinados em modos de leitura psicanalíticos, também podem depositar nos alunos as suas próprias inseguranças, partes de si mesmos que rejeitam: “Eles são preguiçosos”, “não se esforçam”, “não têm interesse”. Muitas vezes, essas críticas são espelhos de algo que o próprio professor teme encontrar em si. Esse jorrar silencioso das projeções, uma espécie de jogo de espelhos, invisível, mas constante, molda a relação pedagógica, transformando-a num campo de tensões invisíveis. A exigência institucional, amplificada pela cultura do desempenho – o “fazer passar” e “produzir bons resultados” –, transforma tanto o aluno, como o professor, em peças de um mecanismo onde a subjectividade se torna um ruído a eliminar.Ansiedade sistémica: os jovens como portadores do sintomaO resultado? Um ciclo de pressão que atravessa gerações. Pais ansiosos por ver os filhos “terem sucesso” — muitas vezes para compensar frustrações próprias —, professores avaliados pelo desempenho das turmas, e jovens que carregam às costas não só as suas expectativas, mas as de todos à volta. O efeito desta engrenagem, na saúde mental dos jovens, é visível. No consultório, não é raro receber adolescentes com sintomas psicossomáticos, sobretudo na véspera dos exames: dores de estômago persistentes, insónias, ataques de pânico, crises de ansiedade, entre outros. Outros chegam com um sorriso tenso e uma frase, invariavelmente, parecida: “Eu só quero acabar com isto.” A frase refere-se ao exame, mas ecoa, noutro nível, o desejo de se libertar de um lugar de constante avaliação — na escola, em casa, nas redes sociais.O que acontece quando o jovem é escutadoCuriosamente, quando o imperativo da nota é suspenso, e se oferece ao jovem um espaço de palavra — seja numa conversa clínica; seja numa roda de diálogo, na própria escola —, algo muda. O discurso deixa de girar em torno de resultados e começa a explorar perguntas próprias: “O que gosto de aprender?”, “Porque é que este assunto me irrita tanto?”, “O que é que eu quero fazer com o que sei?”.Há uma ideia errada de que aliviar esta pressão para os exames é “ser brando” ou “despreparar para a vida”. Não é disso que se trata. Trata-se de devolver ao estudo o seu lugar de descoberta e ligação. Quando um jovem sente que pode falar sobre o que o angustia, a relação com a aprendizagem muda. As notas deixam de ser um veredicto sobre quem ele é e passam a ser uma parte, e não o todo, do seu percurso. É aqui que a Psicanálise tem um papel insubstituível: não só na eliminação da ansiedade, mas também na escuta da sua mensagem.Entre a nota e o desejo de saberVivemos num mundo em que o exame se tornou rito de passagem central, quase substituindo outros marcos de maturidade. Porém, se a cultura escolar continuar a valorizar apenas a “biblioteca interna” dos alunos pela quantidade de livros armazenados e não pela possibilidade de os abrir e ligar, corremos o risco de formar uma geração de “pseudo-eruditos congelados”: capazes de reproduzir respostas, mas incapazes de criar perguntas. Pessoas, essas sim, facilmente substituíveis pela Inteligência Artificial.Defender o bem-estar dos jovens não é protegê-los do esforço, ou evitar-lhes a frustração: é garantir que o estudo se integra no seu mundo interno, como algo que o expande e não como tijolo morto a transportar até à prova. Isso exige que professores e famílias também olhem para o seu próprio papel no ciclo de pressão, reconhecendo que, muitas vezes, a ansiedade que depositam nos filhos é a sua própria ansiedade de falhar.Os exames nacionais vão continuar a existir. Cabe-nos escolher se serão o único espelho onde os jovens se olham, ou apenas um dos muitos reflexos possíveis. A Psicanálise lembra-nos que nenhum resultado escrito num papel define o valor de uma vida. E que, no fim, o mais importante é que, depois da última prova, reste algo mais do que cansaço: reste o desejo de continuar a aprender. Um exame é só um exame – mede a resposta a uma pergunta num dia específico; a vida, porém, mede a capacidade de sustentar o desejo de saber ao longo do tempo. Entre a nota e o Ser, o que realmente conta é que o jovem possa dizer — de si e do seu percurso — que não foi apenas avaliado, mas verdadeiramente visto.