Entre a força e o direito: implicações do caso iraniano

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Na madrugada de ontem, os Estados Unidos conduziram ataques cirúrgicos no Irão. E, portanto, este texto corre um grande risco de envelhecer mal antes de chegar às mãos da pessoa (se for uma) ou pessoas (se forem duas) que o leia ou leiam. Antes de mais, importa lembrar o obvio: a ameaça de um Irão dotado de armas nucleares é séria e não deve ser ignorada. Foi precisamente para conter esse risco que em 2015, os Estados Unidos e vários parceiros internacionais celebraram um acordo internacional com o Irão, impondo limites rigorosos e verificáveis ao programa nuclear em troca do levantamento de sanções. O acordo demonstrou que a diplomacia podia produzir resultados tangíveis. Porém, a sua revogação unilateral em 2018 por decisão de Donald Trump, enfraqueceu esse caminho e criou um vazio estratégico que poderá ter levado à situação atual.

Os efeitos reais do ataque ao programa nuclear iraniano só poderão ser verificados a médio prazo, embora os efeitos na paz possam ser mais rápidos, uma vez que o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão anunciou que o país irá responder. Já as repercussões para o sistema jurídico‑constitucional norte‑americano e para o sistema internacional foram imediatas. Do ponto de vista jurídico interno, a decisão de ontem foi tomada sem autorização prévia do Congresso, contrariando o artigo I da Constituição dos EUA, que atribui ao Legislativo o poder exclusivo de declarar guerra e contrariando também a War Powers Resolution, aprovada em 1973, que só permite ações militares sem consentimento do Congresso em caso de ataque armado ou perigo iminente às forças americanas, o que não foi o caso. Assim, a legalidade internas do ataque está formalmente em causa. Externamente, o secretário‑geral da ONU expressou profunda preocupação, classificando os ataques como “uma escalada perigosa” que “poderia fugir rapidamente ao controlo” e reafirmando que “não há solução militar” — apenas a diplomacia e alguns dos principais aliados dos EUA, nomeadamente a Austrália, Nova Zelândia, México, Japão, Coreia do Sul, Reino Unido, Itália e a União Europeia, reforçaram o apelo à contenção e ao regresso à negociação multilateral, sublinhando a importância de evitar uma nova escalada. Por sua vez, China e Rússia criticaram com firmeza a operação, destacando a falta de mandato do Conselho de Segurança da ONU e advertindo para os riscos de instabilidade regional e global. Finalmente, países da região, como Iraque, Omã e Líbano, manifestaram sérias preocupações com o impacto estratégico do ataque, apontando para as consequências danosas de uma escalada militar no Médio Oriente.

Do ponto de vista do funcionamento do mundo, este ataque evidencia mais do que o uso questionável da força, representa uma erosão continuada das instituições que sustentam a democracia e a paz. Ao ignorar a Constituição e contornar o Conselho de Segurança da ONU, os EUA assinalam um precedente preocupante: que a força pode suplantar o direito e que os mecanismos destinados a prevenir decisões precipitadas podem ser relegados pela urgência (ou expediência) política.

Para um país como Portugal, com uma tradição de diplomacia multilateral, participação ativa nas instituições internacionais e compromisso com o direito internacional, a defesa de uma ordem global baseada em regras não é uma questão abstrata mas uma condição estratégica. A nossa segurança, influência e capacidade de afirmar interesses próprios dependem do respeito pelas normas, da previsibilidade dos comportamentos dos países e da eficácia dos mecanismos diplomáticos, pois é precisamente em tempos de tensão que o direito, e não a força, protege os países de menor dimensão.

Se no século XX construímos instituições para prevenir a guerra, no século XXI não podemos deixá-las morrer sob o império da urgência ou da eficácia. De facto, as regras não restringem o uso da força mas legitimam-na. E defender esse princípio é também defender Portugal.

Professor Convidado do IEP/UCP e da NSL/UNL

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