Entre a Alma e o Algoritmo: O Direito de Autor na era da Inteligência Artificial

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“A tecnologia é a campainha do progresso, mas a arte é a voz da alma”

John F. Kennedy

Imaginemos uma obra de arte, tão sublime, tão impregnada de significado, que, ao contemplá-la, sentimos a pulsação de uma mente criadora na sua concepção. No entanto, ao espreitarmos os bastidores da sua génese, não encontramos pincéis, nem mãos, apenas um frio emaranhado de código e fórmulas. Foi precisamente isso que teve lugar, em 2022, quando uma imagem intitulada Space Opera Theater, gerada por um sistema de Inteligência Artificial (IA), conquistou o primeiro lugar num concurso de belas-artes no Colorado. O júri, hipnotizado pela excelência do autor que pensou ter dado vida a essa imagem, coroou, sem o saber, o engenho de um algoritmo.

Sucede que num palco onde outrora apenas o individuo ousava dançar, surge agora uma nova protagonista: a IA. Sem alma que capture o que só o coração pode sentir, a IA gera imagens, palavras e sons que se confundem com a arte dos mestres. Num inquietante entrelaçar de engenho e precisão, a IA simula a criação intelectual, desafiando o seu cântico; questionando a essência sobre a qual assenta o direito de autor.

Que lugar poderá a máquina ocupar na catedral do direito de autor, onde a tinta da lei há muito protege a faísca indomável do autor? Ao longo dos séculos, o direito de autor foi configurado como um templo dedicado à sacralidade da obra e do seu criador. No altar deste direito, o autor emerge qual figura mística, emanando a obra intelectual do seu sopro vital. A Convenção de Berna, qual texto sagrado, tutela a obra (literária, artística e científica) como uma fagulha que emana do espírito humano. Ecoando este cânone, a União Europeia declara que o direito de autor apenas pode ser invocado para proteger a obra que é fruto da liberdade criativa do seu autor.

Ora, a frieza algorítmica, que pontua a produção exclusivamente gerada pela máquina, não pode ser comparada e equiparada ao calor visceral da criação do espírito. A máquina tem capacidade para gerar conteúdos belíssimos, faltando-lhe, não obstante, a faísca vital que transforma palavras, linhas ou notas em criação imbuída de alma.

A nebulosidade conceptual surge, contudo, se houver intervenção humana. Se a máquina for o pincel e o utilizador o pintor, será que podemos outorgar a este último o título de autor? Talvez, desde que a referida intervenção vá além do simples acto de fornecer comandos. O toque humano terá de ser significativo, uma teia fina, quase invisível, que transforme a produção da máquina em criação intelectual. Esta abordagem reconhece o papel crescente da IA como ferramenta criativa, reafirmando, entretanto, que só com a mão humana a produção ex machina pode passar de mero reflexo mecânico.

A máquina pode entrelaçar fios e gerar padrões belíssimos, porém, o fio de ouro (a originalidade, a liberdade criativa) deve ser entretecido por mãos humanas. Tal como no mito de Pigmalião, a obra só ganha vida, verdadeiramente, quando tocada pelo criador intelectual, exibindo a essência que só o autor lhe pode imprimir.

A IA consegue reproduzir estilos, imitar emoções, todavia, o processo pelo qual chega à produção não contém as nuances invisíveis que a convertem em obra e que reflectem, a personalidade do seu autor. As decisões que a máquina toma não são o resultado de dilemas, de angústias, de euforias ou de revelações pessoais (que o criador carrega consigo e que derrama sobre a tela, o papel ou o pentagrama) e sim escolhas programadas dentro de uma matriz lógica.

Por mais impressionante que seja o desempenho da IA no domínio da produção cultural, ela continua a ser, em última instância, uma ferramenta, carecendo da centelha que transcende a técnica e eleva a produção ao plano da arte. É o toque humano, único e pessoal, que transforma um conjunto de linhas ou notas em algo que ressoa no espírito de quem observa, lê ou ouve. Na dança entre ser humano e máquina, a criação intelectual permanece como espelho daquilo que é profundo e incomensurável.

Não se pense que tal dança se limita ao acto da criação intelectual, pois invade, também, o campo da violação de direitos. A aprendizagem automática, o processo em que as máquinas devoram vastas quantidades de dados para aprender a gerar conteúdos, passa pelo consumo de obras protegidas (imagens, textos, sons, etc.) frequentemente sem o consentimento dos titulares de direitos relevantes. Aqui, a linha entre inspiração e apropriação torna-se perigosamente ténue.

A máquina, desprovida de ética ou de discernimento, absorve tudo o que lhe é dado, emulando traços, estilos e características, e tornando turva a fronteira entre a criação original e a forte sombra de algo previamente criado. Qual espelho, a IA devolve ao mundo produções que assentam na reprodução e adaptação das obras que consumiu, sem respeito pelo direito de autor.

Enquanto o sol se ergue sobre esta nova era tecnológica, o direito de autor enfrenta um horizonte de incertezas. A essência deste direito permanece, sem embargo,  imutável, residindo na criação intelectual e no vínculo entre autor e obra, sendo essa conexão, entre mente, alma e expressão, que confere à obra a sua originalidade.

O palco está montado: de um lado, o espírito humano, eterno e indomável; do outro, a máquina, seguindo padrões, algoritmos e parâmetros. Pelo meio, temos o direito de autor, guardião ancestral da criatividade intelectual, que enfrenta um dos maiores desafios da sua existência.

Neste novo amanhecer, o direito de autor terá, mais que nunca, de encontrar um equilíbrio entre o velho e o novo, reconhecendo a IA como ferramenta que o autor tem à sua disposição, sem perder de vista a centelha humana (o cerne da criação autoral) e lembrando (num mundo onde a máquina ousa simular o acto de criação, como uma sombra que segue o seu criador, sem jamais lhe tocar) que, no que respeita ao direito de autor, a máquina “gera” e o ser humano “cria”.

Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico

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