Enquanto isso, na América Latina – Final

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Termino hoje, por enquanto, a série de textos sobre a América Latina publicados aqui no último mês. O foco da crónica de hoje será o maior país da região e, também, o maior país de língua portuguesa e o segundo maior país negro do mundo: o Brasil. Além da sua importância intrínseca, trava-se ali, neste momento, um combate entre a civilidade e a barbárie a que o mundo, literalmente, não pode estar alheio.

O pior das elites brasileiras chegou ao poder em 2018 pelo voto popular, fortemente condicionado por uma campanha que aliou as forças saudosistas da ditadura militar de 1964, os interesses da burguesia local filiada ao mais feroz receituário neoliberal e os desígnios da maior potência do mundo, os EUA, incomodada com a possível ascensão e crescente autonomia internacional do Brasil, económica e politicamente.

A campanha que levou Bolsonaro - um apagado capitão da reserva e deputado federal que, apesar do seu longo tempo na câmara, era mais conhecido pelas suas "bocas" do que pelo seu trabalho efetivo - à presidência do Brasil foi um caso de sucesso da estratégia que tem permitido a ascensão ao poder, nos últimos anos, do populismo direitista protofascista, racista, homofóbico e xenófobo, cujo representante principal é o ex-presidente americano Donald Trump.

De facto, teve de tudo: demagogia "antipolítica", falso discurso anticorrupção, intimidação, assassinatos, fake news, robôs informáticos e - cereja em cima desse bolo contaminado - o apoio crucial da direita conservadora local, herdeira direta dos antigos senhores da Casa Grande, para a qual decidir entre o capitão admirador da ditadura e da tortura e um professor conhecido pela sua irrepreensível prática democrática era uma "escolha difícil".

Três anos depois, Bolsonaro está em queda. Pela primeira vez, a sua taxa de rejeição é superior à sua popularidade (estimada neste momento em menos de 25%), o que, para quem conhece marketing político, tem uma leitura. Três fatores parecem ter contribuído para isso. Primeiro, a deliberadamente desastrosa gestão da pandemia da covid-19, o que, aliado às incongruências na frente económica, agravou a situação social dos brasileiros. Segundo, o início da reabilitação judicial do ex-presidente Lula da Silva, para todos os efeitos o seu principal adversário. Terceiro, o clima internacional - para o qual a vitória de Joe Biden não deixou de contribuir -, caracterizado pela decisão das forças democráticas, em todo o mundo, no sentido de barrar a extrema-direita (veja-se os últimos resultados das eleições regionais em França).

Na semana passada, Bolsonaro perdeu a sua última bandeira (já descolorida, diga-se), ao ser envolvido pessoalmente por um apaniguado num escândalo de corrupção relacionado com a compra da Covaxin, uma vacina indiana anticovid, depois de, pouco tempo atrás, ter sido igualmente descoberto o "tratoraço", um esquema de compra de votos idêntico ao "mensalão", que provocou a desmoralização do PT. Só os ingénuos ("trouxas", dir-se-ia no Brasil), portanto, podem continuar a acreditar que Bolsonaro é um paladino anticorrupção.

Será a dinâmica de queda do atual presidente brasileiro irreversível? Não é certo. O fator decisivo será, possivelmente, e tal como é tradição na política do país, a posição que tomar o chamado Centrão (ampla coalização de partidos ideologicamente situados entre a direita e a esquerda e que, na verdade, são apenas movidos pelos seus interesses, sobretudo de natureza económica). Por outro lado, certos observadores receiam que Bolsonaro tente um golpe de Estado à la Trump em 2022, caso perca as eleições. Ao contrário do que aconteceu nos EUA, um golpe desse tipo no Brasil pode ser factível.

Caso as forças progressistas retornem ao poder no Brasil, juntando-se a outros exemplos já ocorridos desde 2020, isso poderá contribuir para que a América Latina volte a viver um período de mudanças democráticas e sociais. Aguardemos.

Escritor e jornalista angolano publicado em Portugal pela Caminho

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