Enquanto isso, na América Latina – 2

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O candidato progressista Pedro Castillo venceu as eleições presidenciais do passado dia 6 no Peru. Matematicamente, a candidata conservadora, Keiko Fujimori, não tem mais hipóteses, mas continua a reclamar fraude, apesar de o Júri Nacional de Eleições do país ter afirmado que a disputa foi limpa.
A Organização de Estados Americanos, que não pode, pelo seu histórico, ser acusada de "esquerdismo", reafirmou a lisura e o êxito das eleições. Castillo tomará posse no próximo mês.

A vitória do professor e sindicalista peruano junta-se a um conjunto de acontecimentos que, a partir de 2019, parecem estar a inverter a onda conservadora que varreu a América Latina desde 2010. Com efeito, entre esse ano e 2019, vários governos progressistas da região foram destituídos, a maioria por expedientes extraeleitorais, casos paradigmáticos de Fernando Lugo, no Paraguai, Dilma Rousseff, no Brasil, e Evo Morales, na Bolívia. O chamado lawfare também foi utilizado para perseguir líderes populares e progressistas, como o brasileiro Lula, o equatoriano Rafael Correa e a argentina Cristina Kierchner.

A partir de 2019, a situação começou a mudar. Governos progressistas foram eleitos na Argentina e no México. Seguiu-se a Bolívia, onde, no ano passado, foi eleito o candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), Luis Arce, com 26,3 pontos a mais do que o direitista Carlos Mesa. A surpreendente vitória de Pedro Castillo, no Peru, é o mais recente acontecimento dessa série.

Ao mesmo tempo, em países ainda dominados pelo conservadorismo, crescem os sinais que apontam para uma possível e próxima viragem. O caso simbolicamente mais interessante, por várias razões, é o do Chile. Depois de terem conseguido, através de um plebiscito em outubro de 2020, aprovar a necessidade de substituir a constituição do país, herdada do sangrento período Pinochet, os chilenos elegeram em maio deste ano uma Assembleia Constituinte cuja maioria é constituída por forças independentes e de esquerda; os conservadores não alcançaram sequer um terço das cadeiras, o que significa que não terão direito de veto. De notar que, das 156 cadeiras da Assembleia Constituinte, 83, ou seja, a maioria, será ocupada por mulheres.

Que fator poderá explicar todas estas mudanças? A mobilização popular. Nos últimos três anos, milhões de pessoas tomaram as ruas em vários países latino-americanos, o que, em alguns casos, permitiu a vitória eleitoral das forças progressistas locais e, em outros, impediu o avanço das reformas neoliberais, algumas delas brutais, como é o caso da Colômbia.

Uma nota derradeira para acrescentar que, quando se fala em "forças populares e progressistas" na região, estamos a referir-nos a um vasto arco que vai da democracia cristã do Chile, conhecida pelas suas posições favoráveis às classes mais pobres, até partidos marxistas-leninistas, como é o caso do Peru Libre, pelo qual concorreu o recém-eleito presidente do Peru.

Os factos demonstram que tais forças não são homogéneas. Por outro lado, se alguém, romanticamente, espera nesse campo uma pureza e uma perfeição totais, desengane-se. Há inclusive, entre os líderes populares e progressistas latino-americanos que têm sido eleitos nos últimos tempos, alguns, como o presidente mexicano, que, se não são negacionistas, resolveram, no caso da pandemia da covid-19, apostar na "imunidade de grupo", ou mesmo conservadores sociais, como o novo presidente peruano.

A maka é a seguinte: a "contradição principal" na América Latina, neste momento, é entre as necessidades da maioria da população, incluindo uma classe média cada vez mais empobrecida, e os interesses das classes dominantes, herdeiras culturais dos antigos colonizadores europeus, logo, profundamente racistas e discriminatórias, principais instrumentos da estratégia neoliberal na região.

Escritor e jornalista angolano, diretor da revista África 21

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