Encontramo-nos por aí
Mais um ano de avanços, de desenvolvimento de eficazes sistemas de diagnósticos apoiados por Inteligência Artificial, de mais carros menos poluentes e mais autónomos, de chats que fazem uma pesquisa exímia por nós, de sistemas que preveem as nossas vontades de alimentação e as nossas necessidades de sono, de mais aplicações para garantir que nada falta à nossa produtividade, de mais realidade virtual. Tanto que a evolução nos deu para resolver problemas e ainda nenhum desenvolvimento tecnológico inventou a receita para o fim da violência de género, das desigualdades sociais, do revivalismo bafiento e dos vários crimes contra os Direitos Humanos e contra a dignidade de todas as pessoas, independentemente das suas características.
Estávamos em 2014 quando comecei a trabalhar como jornalista especialista em questões de género e desigualdades sociais. A minha primeira grande reportagem foi sobre crianças transgénero, e seguiram-se outras sobre mulheres violadas pelos maridos, a história de Gisberta, a denúncia de discriminação de alunos homossexuais no Colégio Militar, os casos de mutilação genital feminina na zona da Grande Lisboa e na Guiné-Bissau, e muitas mais.
Lembro-me de, por volta de 2016 ou 2017, pensar que provavelmente teria de escolher outra área jornalística de atuação para os anos seguintes. Afinal, os direitos estavam praticamente todos conquistados em Portugal, e a sociedade evoluiria passo a passo à medida que a lei abria caminho para a inclusão de cada vez mais identidades. Dali a pouco tempo não haveria, assim, mais histórias de discriminação, nem de desigualdade para contar, pensei eu. O caminho far-se-ia gradualmente e certos temas deixariam rapidamente de o ser, antecipei. Teria, então, de escolher uma outra área.
Bom, não podia estar mais enganada. Hoje, quase 10 anos depois, dou por mim a revisitar o meu portefólio jornalístico e a identificar reportagens e entrevistas que, hoje, seriam mais vistas como “demasiado ousadas e provocadoras” do que na altura em que foram publicadas. Peças sobre temas que hoje inspiram crimes de ódio, insultos e ameaças sem qualquer pudor. Dou por mim a repetir a mesma narrativa e a explicar os mesmos fenómenos, tal como fazia há 10 anos.
A violência e a desigualdade de oportunidades e de direitos estão bem vivas - foi por esse reconhecimento perspicaz de Bruno Mateus, na altura diretor interino do Diário de Notícias, que aceitei o seu convite para esta colaboração.
Desde abril, a cada quinzena, trouxe-vos crónicas sobre a cultura do assédio e a ciberviolência, a misoginia de Trump, as abordagens demagógicas e simplistas da extrema-direita, os números do 25 de Novembro sempre sangrento, a ausência de vozes de mulheres no espaço mediático e a forma como elas se tornam menos “Presidenciais” do que eles, as mulheres no desporto à boleia dos Jogos Olímpicos, as ondas antiaborto no Brasil, e várias opiniões guiadas pela atualidade.
Esta semana recebi a seguinte mensagem por parte da nova direção do jornal: “No âmbito de uma reestruturação que estamos a fazer nos espaços de opinião do jornal, decidimos suspender a sua colaboração.” Uma decisão que se deve “exclusivamente a opções que temos de fazer neste momento”.
Assim, agradeço à equipa do Diário de Notícias que me acolheu durante estes meses e, sobretudo, a vocês: os leitores e as leitoras que me desafiaram, que me escreveram mensagens de consideração, e que me estimularam a trazer sempre a melhor análise. Espero encontrar-vos noutros espaços de conversa, de análise e de reflexão.
Na minha segunda crónica recordei a bonita frase da artista e ativista Nina Simone: “Liberdade é não ter medo.” Tentarei nunca me deixar amedrontar pelo medo de dizer o que penso, mesmo que cause incómodo. Até já.