No centenário de Eugénio de Andrade interrogamo-nos sobre o que afastou Eugénio de nós nos últimos anos. Oh, por certo não o foi dos seus leitores, que continuam a esgotar os seus livros e a inspirar-se ("o poeta é o que inspira, não o que é inspirado" Paul Éluard) nos seus versos. Quem está então por detrás deste "nós" que nos coloca hoje mais longe do poeta que foi rei da nossa adolescência?.A poética de Eugénio assenta em evidências luminosas e imediatas que abrem para esse "paraíso sem mediação" de que falava Eduardo Lourenço. A sintaxe é simples e tudo no poema, seja a alegria ou o desgosto, o canto ou a dor, brilha sem sombras. É a calma lúcida de quem esteve sempre do lado da vida, do prazer e das coisas da terra. Mesmo quando lhes diz "merda" ("não mandaste à merda o país, nem nenhum ministro", poema a Ruy Belo, "recomeço, pedra sobre pedra, a juntar palavras; quero eu dizer: ranho baba merda", poema "Ofício")..Uma vez ouvi dizer que a poesia era um género "delicodoce". Só lembro aqui a minha estranheza com essa palavra por saber que alguns classificaram assim a poesia de Eugénio. Como se a delicadeza e a doçura fossem fardos de que o poeta teria de soltar-se para chegar à sua própria voz. Como se fosse uma indecência ser delicado ou doce num mundo de brutos, havendo antes que deitar-lhes a língua de fora ou mostrar-lhes o traseiro..Outros diziam que a poesia de Eugénio era "água chilra". Tudo isso nos levou a olhar para a sua poesia, que tanto amámos na juventude, com a mesma distância irónica que o nosso eu adulto usa para com a sua perdida adolescência. E nesse movimento de retração fomos perdendo de vista uma poesia grande e autêntica, que tão importante fora para a nossa formação humana e literária. Como quem se envergonha das suas origens..Temos que reler urgentemente Eugénio de Andrade. Ele é bem maior do que estes nossos afetados pudores, porque soube desafiar todo aquele pudor hipócrita e cinzento que o cercava..A nossa dificuldade de falsos sofisticados é saber ver, na sua imediata e ofuscante luz, a força do novo. Ao contrário de passadas gerações, que fizeram sua a máxima de Stendhal "É preciso começar a vida com um duelo" e avançaram pela poesia dentro em formação cerrada aos gritos de "Morra! Morra!", as mais jovens gerações poéticas trabalham tranquilamente a nossa língua e estão plenamente conscientes do escasso reconhecimento que a poesia tem aqui e agora e de que a resposta a essa situação está no apuramento do seu trabalho e não nos gritos da histeria..Por certo alguns lamentam que se tenha perdido neste percurso a "dimensão agonística" da poesia. Não será porque a verdadeira luta pela poesia se trava por dentro de cada poeta e não em guerras de seitas que hoje, depois de tanto som e de tanta fúria, deixaram completamente de nos interessar?.Reler torna-se assim um exercício de criatividade, ao procurar reposicionar os mestres do passado em nova perspetiva e em nova luz. Assim compreenderemos o que está vivo e o que está morto. E certamente teremos surpresas..Cada poeta, cada leitor de poesia, cada época faz o seu cânone, reconhece as suas heranças ou os seus contenciosos com os poetas do passado, e nesse gesto renuncia a estabelecer o seu cânone como imperativo e único e por isso nunca lhe chamará o cânone. Ninguém mais é capaz de avançar para a praça pública, em jeito de forcado amador, proclamando "urbi et orbi" trazer consigo a verdadeira poesia aos povos. Não é a dimensão agonística, a luta com o anjo que toda a poesia autêntica traz consigo que falta a estes jovens poetas tranquilos. Eles assumem simplesmente o bom gosto de não confundir a arte da poesia com a arte do toureio a pé..Diplomata e escritor