Em História não fazemos futurologia. A pandemia de covid-19 e a História

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No início de 2020, todos nós, de uma maneira ou de outra, sabíamos que existia um problema sanitário na longínqua China. Nada de novo na história do mundo. Mas, tal como à Organização Mundial da Saúde, a nós, ocidentais, não nos passou pela cabeça que viéssemos a enfrentar uma pandemia que nos fizesse sentir estar a viver o fim dos tempos como estamos ainda neste momento. De tal maneira estávamos tranquilos que, por exemplo, eu estava em Roma com um colega a trabalhar num arquivo quando, ao jantar, percebemos que as autoridades italianas tinham decidido encerrar Milão e cancelar o Carnaval de Veneza. A situação era grave. Era o prenúncio dos meses que se seguiriam.

O ofício do historiador, como dizia Jacques Le Goff, é estudar o passado, interpretá-lo, analisá-lo e, talvez, retirar daí lições para lidar no presente e no futuro com situações semelhantes. Ao historiador há duas coisas que estão vedadas: julgamentos de valor e previsões de futurologia. A isso soma-se a necessidade de olhar para o passado sem as lentes do nosso tempo. Tarefas difíceis, senão utópicas, porque também nós somos seres humanos. Compete-nos comparar o presente com o passado e traduzir essa comparação em algo inteligível e útil para a sociedade. Mas a verdade é que, para nós, historiadores treinados à luz do espírito da Escola dos Annales, que impõe distanciamento e neutralidade ao cientista aquando da análise de um episódio histórico, o momento de poder analisar a presente crise ainda está longe.

Apesar de todas as limitações auto-impostas pela deontologia da disciplina, o facto é que a História tem um papel essencial na compreensão e na análise da pandemia e, também, das consequências sociais, económicas, geopolíticas e religiosas que acarreta. Há algo nas palavras que António Vieira, S.J. escreveu no início da sua História do Futuro que parece responder à ânsia humana do presente: "Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros [...]" (Sá da Costa, 2008, vol. I, 27). Mas fazer isto põe em causa o ofício do historiador e lembra-nos a religião e a política.

Apesar de o passado nos poder ajudar a compreender o presente e o futuro, a tentação de falarmos sobre o futuro pode, perigosamente, aproximar-nos da futurologia ao invés de da História. 2020 e 2021 são certamente anos "da ciência" e, a par das ciências duras, também as Humanidades e, nomeadamente, a História têm e terão muito a dizer sobre esta pandemia, por serem o veículo principal que promove e produz uma interpretação transversal deste tipo de fenómeno.

Urge dizer que, tal como no passado, sentimos hoje a necessidade e a premência de compreender a doença e de lhe pôr cobro. Historicamente, sabemos que este caminho não é livre de espinhos; que traz dias soalheiros e outros de tempestade. Mas chama-se a isto fazer ciência com base na tentativa e no erro, seja ela ciência dura ou humana.

Ao contrário do que aconteceu em pandemias passadas, hoje tínhamos por adquirido que a ciência nos daria respostas imediatas, e quando isso não aconteceu, observámos pânico e desconfiança nas pessoas. Mas a ciência do século XXI produziu em tempo recorde uma série de vacinas que se espera que protejam a sociedade dos aspectos mais duros desta doença. Paralelamente, verificámos que só práticas tão antigas quanto cercas sanitárias, confinamentos e limitações à circulação descritas já na Bíblia - lembremo-nos dos leprosos - puderam ir travando o avanço da pandemia. Tal como nos séculos XIV e XX, observámos impotentes a população a ser dizimada por uma doença desconhecida, os cadáveres a serem enterrados quase que às escondidas, como aquando da peste negra ou do ébola.

O isolamento dos doentes com covid-19 tornou-os leprosos bíblicos: querem-se afastados e longe da vista, de preferência em covidários. O preconceito para com o doente é hoje igual ao do passado. Os médicos que enfrentam o desconhecido para tentarem salvar o doente são iguais aos do passado, até na tentativa de se protegerem com vestuário adequado. A crise socioeconómica que se sente é já semelhante às do passado, embora seja necessário realçar que hoje somos mais dependentes do sector terciário.

As perguntas sem resposta são imensas: quanto mais tempo durará a pandemia? Terá o teletrabalho vindo para ficar? E o ensino a distância? Haverá êxodo populacional para as zonas rurais? Mudará o conceito de cidade? Entenderemos que é preciso ter zonas verdes e poluir menos para continuarmos a ter vida na Terra?

Continuaremos a zoomar sete dias por semana, 24 horas por dia? Teremos redescoberto a importância do comércio local? E de consumir comida feita por nós com ingredientes naturais? E o chilrear dos passarinhos que agora se ouve manter-se-á? Teremos chegado ao fim dos tempos? Virá por aí um mundo novo e, com ele, um Apocalipse bíblico?

A análise histórica profunda que esta pandemia requer só vai ser possível daqui a uns anos. Neste momento, aos historiadores resta observar o dia-a-dia da humanidade e ir comparando com o passado, tentando esboçar padrões. E, nisso, o mundo académico está a ser prolífero e a dar o seu melhor para oferecer à sociedade o produto do conhecimento acumulado ao longo de séculos de um modo informativo que contribua para melhor compreender o presente e preparar o futuro.


Investigadora principal da Faculdade de Letras Universidade de Lisboa.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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