Elogio da desobediência: Carlos Matos Gomes, um exemplo

Publicado a

Olhamos para este mundo. Trump e todos os seus adeptos, seguidores, imitadores, parecem dominar a realidade distópica em que vivemos. Dos bastidores aos grandes palcos da doutrinação mediática, receamos que o espectáculo – a civilização do espectáculo sobre a qual escreveu Vargas Llosa um luminoso ensaio – seja agora sinónimo de banalização absoluta do mal. Esta já estafada expressão, «banalização do mal», tem de ser repensada, ou reequacionada. Hanna Arendt foi contemporânea do nazi-fascismo e acompanhou a questão-Eichmann. Um outro conjunto de textos, A Desobediência Civil, a partir dos exemplos de Sócrates e de Thoreau (estes, sobretudo), abre a questão central da banalidade do mal a uma outra hipótese de leitura dessa inescapável banalidade que, escudada na burocracia e na mentalidade tecnocrata, parece eternizar-se. A ideia da «desobediência civil» fez sentido no contexto da Guerra do Vietname, por exemplo, quando milhares de jovens rasgaram ou queimaram as cadernetas militares. As manifestações contra a Guerra Colonial, as crises académicas em Portugal nos anos sessenta igualmente têm, como essência, a desobediência como princípio de sobrevivência. No mundo em que vivemos ser-se desobediente será uma virtude, uma vez que desobedecer implica ser-se independente, livre, crítico.

Olhamos para Portugal e vemos que a desobediência raramente é vista como virtude. Somos um povo, diz-se, «de brandos costumes». Um povo obediente. Isso agrada à classe política e empresarial; agrada aos ministros e aos presidentes dos partidos; agrada aos pais e aos professores, ao padre que tem o seu rebanho, ao porteiro que tem o poder de deixar entrar ou não quem queira. Pode ser numa discoteca. Pode ser num prédio. Pode ser numa escola, numa universidade. Um provérbio português sintetiza a mentalidade da obediência: «Manda quem pode, obedece quem deve.». Um outro, vindo de Salazar, ainda é uma lei na cabeça de muitos decisores: «Um lugar para cada um/ cada um no seu lugar.»

Desobedecer, porém, foi o que levou a que o Ocidente conhecesse a Revolução Francesa, o fim do Absolutismo. Das revoluções liberais à Resistência Francesa na luta contra o nazi-fascismo, a desobediência foi o dínamo da acção crítica. Camus, como nenhum outro, ilustrou o espírito da desobediência nesse livro capital, O Homem Revoltado. E foi a desobediência que, no limite, deu à História os seus grandes símbolos: de Sócrates (o filósofo, não o nosso), a Jesus e Gandhi; de Simão Bolívar a Martins Luther King, de Rosa do Luxemburgo a Rosa Parks, isto é, da fundação da social-democracia, o inicial SPD alemão, mais tarde KPD, o Partido Comunista da Alemanha, assassinada em 1919 pelas milícias nacionalistas compostas por veteranos da Iª Guerra Mundial, até à activista americana que, a 1 de Dezembro de 1955 não cedeu o seu lugar no autocarro a um homem branco. Foi o rastilho para o movimento dos direitos civis. Os exemplos de desobediência que fizeram avançar o mundo não acabam. Porém, estes exemplos de desobediência têm, a sustentá-los, a virtude do ideal da liberdade. Hoje, em 2025, convém lembrar um caso de desobediência recente: Carlos Matos Gomes (1946-2025).

Recentemente falecido, Matos Gomes foi um exemplo maior de liberdade e símbolo não só do 25 de Abril, mas da desobediência ao pensamento único que lhe mereceu, num livro de ensaios recente, a condenação lúcida. Carlos Matos Gomes, aliás, o escritor Carlos Vale Ferraz, autor de Os Imortais, romance que António-Pedro Vasconcelos levou ao cinema, autor de Geração D, essa geração da democracia, da descolonização e da deserção é um nome maior da desobediência, outro D fundacional. Disse-o o militar-escritor de forma absolutamente independente ao pôr o dedo na ferida e obrigando-nos a repensar quem são os pais fundadores da Democracia Portuguesa. Segundo o escritor e combatente, ex-comando, nem Eanes nem Soares são fundadores da democracia, porquanto «a democracia é um processo» e, como tal, é cada um de nós, todos os dias, um fundador da democracia, regime que se faz da cidadania activa de todos.

Isto é importante neste nosso tempo português, quando muitos da minha geração concebem a democracia como um sistema feito de oportunismos vários, incluindo esse grupesco chefiado pelo Duce provinciano Ventura para quem a democracia só serve para, no Parlamento, transformar o diálogo democrático em ofensa permanente e mentira. Carlos Matos Gomes é um exemplo de desobediência especialmente importante para os políticos que se candidatam a

Primeiro-Ministro nesta eleição e que, pelo que vemos, contribuem para o empobrecimento do processo democrático com as suas acções e palavras, os seus lugares-comuns e a total (ou quase total) ignorância quanto à vida concreta dos portugueses. O escritor que compriu comossões na Guiné, em Angola e em Moçambique e foi condecorado com a Cruz de Guerra era um feroz pensador contra todas as formas de tirania e de fanatismo. Num programa recente, na RTP, o «Sociedade Civil», tive a oportunidade de com ele e Raquel Varela falarmos sobre o mal. Luís Castro, dirigindo-se ao Carlos perguntou-lhe por que razão havia uma banalidade do mal e não uma banalidade do bem. Carlos Matos Gomes, resumindo de forma inteligente a problemática do mal, tema de cariz metafísico e político, religioso e, no fundo, um irresolvido humano, considerou que o mal se banaliza porque o homem é movido por um único princípio: a vontade de poder.

Ora, neste tempo de chacais, de tanta cobardia e cinismo, de falência do humanismo numa Europa que deveria, em vez de se armar contra a invasão russa, armar-se contra a tirania, o fanatismo e a ignorância que vicejam nos parlamentos, nas universidades e nas escolas deste continente, e formar as gerações mais novas num verdadeiro espírito de defesa das liberdades e dos regimes democráticos; neste tempo de palavras, de verborreia, Carlos Matos Gomes foi o incisivo, mas discreto, crítico do pensamento de grau zero. Desmontou a análise feita pela miríade de comentadores que se apressam a doutrinar sobre a questão ucraniana, denunciando Putin (mas esquecendo Minsk e os avisos do próprio Mário Soares sobre a NATO e a sua deriva belicista), mas só a ferros condenam abertamente o genocídio da Palestina levado a cabo por Israel. Denunciou a rearmamento da Europa e expôs as relações de interesse entre as industrias digitais e o complexo militar e não deixou de invectivar os tecnocratas europeus que nos governam: de Ursula a Costa, de Meloni e outras eminências pardas que querem pôr os povos da Europa de gatas, destrundo de vez o que distingue a Europa dos States de Trump: o Estado Social, a livre circulação dos bens, das ideias e das pessoas, a educação, a paz, a liberdade.

O autor de Nó Cego, romance de 1982, o vencedor do Prémio Fernando Namora em 2018 com a ficção A Última Viúva de África, o historiador do conflito português em África, e que em co-autoria com Aniceto Afonso escreveu Guerra Colonial (2017) deixa um manancial de livros que compete aos mais velhos dar a ler. Na semana passada despediram-se da nossa vida pessoas belas, com valores, admiráveis. Carlos Matos Gomes, o meu amigo escritor com quem, em Alvalade, em 2022, falei sobre a questão da guerra nos dias a seguir à invasão russa, apresentou o meu romance Um Dia Lusíada (Caminho), em Maio desse ano, na Associação 25 de Abril. Escreveu um precioso ensaio. Devo-lhe esse e outros gestos de enorme adesão humana. «Combater pela liberdade e a paz é o único caminho. Desobedecer é uma virtude.», disse-me.

Diário de Notícias
www.dn.pt