Eles ainda estão por aí
Ainda Estou Aqui, filme de Walter Salles com a atriz Fernanda Torres no papel principal, que retrata a história verídica da família Paiva, cujo pai foi preso e morto nos porões da ditadura militar, bate recordes de bilheteira no Brasil, superando os blockbusters de Hollywood. E, depois de ganhar o Leão de Ouro do Festival de Veneza, é até apontado como forte candidato ao Oscar para Melhor Filme Estrangeiro, em 2025.
Mas, em vez de andar a celebrar conquistas artísticas, o Brasil tem lido, sob choque e espanto, as notícias de que esteve em 2022 a um passo de regressar à ditadura militar descrita no filme. Como a polícia demonstrou, por mensagens, impressões e gravações telefónicas, um golpe de Estado que anularia as eleições daquele ano, envenenaria os candidatos eleitos Lula da Silva e Geraldo Alckmin e eternizaria no poder o capitão Jair Bolsonaro, chegou a estar nas ruas.
Depois de escolhidos os métodos de envenenamento, as metralhadoras e as bazucas, um infiltrado na segurança de Lula alimentava de informações o comando da Operação Punhal Verde e Amarelo e outro operacional já estava em campo para executar o presidente do Tribunal Eleitoral numa tarde de dezembro de 2022. Como não conseguiu apanhar um táxi, o golpe foi adiado, num sintoma da proverbial — e abençoada — incompetência de Bolsonaro e amigos.
Voltando ao cinema, Sylvester Stallone reuniu, na década passada, um grupo de estrelas de filmes de ação para Os Mercenários: o cenário é Vilena, um suposto país sul-americano sob as ordens do General Garza, onde a tortura é prática comum.
Em O Charme Discreto da Burguesia, de 1972, comédia surrealista de Luis Buñuel, uma das personagens, Don Rafael, é embaixador da fictícia República de Miranda, país sul-americano retratado como um lugar desagradável, administrado por um militar autoritário.
Em 1971, Woody Allen realizou e protagonizou um filme, chamado apropriadamente Bananas, passado numa tal de San Marcos, república latino-americana liderada pelo general Emilio Vargas Molina.
Graças a Bolsonaro e outros que tais, a América Latina sempre foi vista, tanto por Hollywood, como pelo cinema de autor, como um conjunto de Repúblicas das Bananas onde os golpes de Estado, entre o trágico e o cómico, protagonizados por militares são o pão nosso de cada dia.
E essa profissão de “ditador militar” que, a ouvidos civilizados, soa tão datada como a de polícia-sinaleiro, a de ator de radionovela, a de telefonista, a de leiteiro, a de linotipista e a de todas as outras que não existem mais, resiste no Brasil e até, pelos vistos, com amplo apoio popular.
Ainda Estou Aqui, no fim das contas, é um filme do século XXI baseado em factos reais de episódios sombrios do século XX. Bolsonaro e amigos são um episódio sombrio do século XXI baseado em factos reais do século XX. E eles também ainda estão por aí.