Eleições para o Parlamento Europeu 2024: uma campanha europeia
1 Não recordo, das oito campanhas europeias que acompanhei e em que trabalhei, alguma, como a deste ano, em que a questão europeia fosse tão debatida.
Em geral, eleição após eleição, o fundo - e a síntese - foi sempre mais ou menos o mesmo: durante os debates, durante a campanha, os assuntos europeus ficavam esquecidos e eram relegados para terceiro plano. Em primeiro lugar, questões internas, políticas, partidárias ou assuntos nacionais, a cuja discussão e esclarecimento os cidadãos pareciam dar prioridade.
E de súbito, em 2024, tudo mudou. Debate-se a Europa, as intenções de Von der Leyen, a expectável composição do areópago de Estrasburgo (e Bruxelas), o peso da direita radical, e o peso do peso da direita radical sobre o futuro do próprio projeto da integração europeia.
Debate-se, e a imagem tem sido usada à saciedade, o elefante na sala, isto é, o presumível crescimento da extrema--direita europeia. À boleia das sondagens, o tema tornou-se central. Que Europa emergirá da noite eleitoral de 9 de junho?
2 A verdade é que, se a Europa e a integração europeia estão no centro do debate, este decorre sobretudo em torno desse monotema. E não apenas em Portugal, também no recente debate entre os candidatos principais dos partidos europeus - ao cargo de presidente da Comissão Europeia -, apesar de organizado em seis partes (seis temas) distintos, se assistiu a um predomínio dessa questão.
É, aliás, útil reflectir justamente nesse debate, de onde emergem algumas pistas interessantes para o futuro da Europa, no médio e longo prazo. Recordo que Ursula von der Leyen, a incumbente, e os candidatos de quatro outros partidos políticos europeus - Nicholas Schmit, pelos socialistas europeus, Sandro Gozi, dos liberais (Renew), Terry Reintke, dos verdes, e Walter Baier, da esquerda europeia (comunistas) - são os candidatos apresentados pelos respetivos partidos no processo designado “dos candidatos principais” (mais conhecido pela designação alemã de spitzenkandidaten).
E, desde logo, foi esse mesmo processo a estar no centro das atenções. Porque, implementado aquando das eleições de 2014, numa tentativa de reforçar a legitimidade e até o interesse popular nas Eleições Europeias, foi logo posto em causa em 2019 pela escolha, justamente, de Von der Leyen, que ocorreu à margem do processo e contra o candidato principal do PPE, e seu líder, Manfred Weber.
Ora, o facto de os partidos políticos mais à direita do espetro partidário europeu - Identidade e Democracia (I&D) e Conservadores e Reformistas (CRE) -, se terem recusado a apresentar candidatos principais, num sinal claro de rejeição do projeto europeu, ou pelo menos, da sua legitimidade, marcou esse debate, transmitido do Parlamento Europeu através da Eurovisão.
Foram, sem dúvida, dos ausentes mais presentes que alguma vez não participaram num debate. E Von der Leyen foi sistematicamente confrontada, ao longo de todo o debate e quase independentemente das políticas concretas em discussão, com a recente admissão da possibilidade de colaborar com esses partidos ou, pelo menos, com alguns deles.
Na minha opinião, que não é unânime, a ainda (e talvez futura) presidente da Comissão Europeia esteve bem. Resumindo, a sua posição parece ser a seguinte:
- os partidos à direita do espectro europeu não são todos iguais e admite trabalhar com alguns deles. E deu o exemplo das suas relações e cooperação com a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni com quem, afirmou, tem colaborado e espera colaborar no futuro;
- em segundo lugar, o sinal de que os dois grupos identificados com a extrema-direita não são exatamente iguais. E se a I&D, o partido constituído em 2019 em torno do Reagrupamento Nacional francês, de Marine Le Pen, e no qual ainda militam, entre outros, o Partido da Liberdade da Áustria, a Liga Norte, a Nova Direita grega e, até há poucos dias, a AfD alemã, entretanto expulsa (já abordarei a posição do Chega), parece estar para lá das linhas vermelhas estabelecidas por Von der Leyen, já o CRE, que integra partidos de muitos países europeus, como o Lei e Justiça polaco, o VOX espanhol ou os Fratelli d’Italia, de Meloni, parece, para Von der Leyen, ser mais aceitável;
- e o terceiro ponto relevante, na minha opinião, é o facto de Ursula von der Leyen ter justamente definido de forma clara os critérios que, a seus olhos, tornam qualquer partido desses espectro partidário aceitável e passível de cooperação. São eles o respeito pelo Estado de Direito, a adesão à integração europeia e o apoio à luta da Ucrânia contra a invasão russa.
3 Pondo em perspetiva estes pontos, o que fez Von der Leyen, pressionada por todos os seus oponentes no debate da passada semana e com os ausentes em mente, foi pôr em cima da mesa - do debate e do futuro - uma possibilidade clara de um entendimento à direita com os partidos de extrema-direita (radicais ou populistas, como preferirem) desde que respeitem aqueles critérios, o que desde logo afasta muitos deles.
Em segundo lugar, ao fazê-lo, a presidente da Comissão também assinalou que, a seu ver, são diferentes os dois partidos e grupos políticos em geral identificados como de extrema-direita, o I&D e o CRE. Essa diferença, a vingar a sua tese, poderá levar à não-confirmação de um dos maiores receios suscitados pelas sondagens:
- o da existência no Parlamento Europeu de um grande grupo, ainda que dividido em dois blocos, de extrema-direita, anti-europeu, pró-Rússia, pouco respeitador do primado da lei e do Estado de Direito. Na verdade, a avaliar os vários programas, partido a partido, eles são diferentes no que respeita a esses pontos.
4 O que nos traz ao Chega. Em 2020, o partido de André Ventura aderiu ao I&D, tendo o seu líder na altura considerado que, embora alguns partidos que o integram sejam mais radicais do que outros, o que caracteriza o Chega é ser anti-sistema. E explicou que, embora tivesse havido contactos com o CRE, as negociações aproximaram-nos mais da Lega, de Salvini, e do Reagrupamento Nacional, de Le Pen.
Ora, sem prejuízo de quaisquer outras considerações (que não são para este texto chamadas), confirmando a turbulência das últimas semanas, tudo indica que possa haver mudanças nas pertenças aos dois grupos de extrema-direita após as Eleições Europeias. E a curiosidade será a de saber como, caso a questão venha a colocar-se, se aplicarão ao Chega os critérios expressos por Von der Leyen.
E se, seguindo essa lógica, o partido se manterá no I&D ou se haverá alguma alteração de rumo.
Fica a pergunta: como se qualifica o Chega, que (até agora) não pôs em causa a integração europeia, nem a pertença de Portugal à União Europeia (quer mudar algumas regras, mas isso querem todos), é a favor da defesa da Ucrânia e não põe em causa (mais uma vez até ver e sem juízos sobre comportamentos ou intenções) o Estado de Direito?
5 Uma palavra final para o que faltou no debate dos candidatos principais e continua a faltar na campanha em geral: refiro-me a um cabal esclarecimento sobre as políticas e questões europeias, em geral, e as soluções propostas pelos diferentes candidatos.
Falta explicar como se vai reforçar a competitividade europeia; que solução para a migração e o asilo (muito se falou do Pacto, mas pouco de verdadeiras respostas); como se vai concretizar e o que vai significar a nova governação económica (reforma que agora entra em vigor); como conciliar defesa do ambiente - e o Pacto Verde - com a necessária mudança da agricultura europeia, mantendo-a (ou voltando a torná-la) competitiva e compensadora; e a investigação e inovação, em particular no digital, como conseguirá a Europa responder ao desafio dos seus rivais, em particular China e EUA?; o que fazer para melhorar a vida dos europeus, a começar pela crise da habitação?; e a Defesa, de que se falou tanto, mas pouco até agora resulta claro, para além da (boa) ideia do escudo de defesa aérea da Europa - como financiá-la e qual o caminho? E outros, tantos outros temas, da Saúde europeia à Educação, reforma dos Tratados, alargamento…
Com tantas interrogações, a única coisa que se pode e deve desejar, é que ainda haja tempo para debater com seriedade e profundidade pelo menos alguns destes assuntos.
Não sei é se haverá tempo, com um elefante tão grande no meio da sala.