Elefante cor-de-rosa (a viver na sala)

As medidas do Governo de apoio às famílias e aos juros/rendas são uma espécie de pequena ajuda, com um bom embrulho e alguma eficácia, mas não se destinam a resolver nenhum problema estrutural. Elas pretendem, sim, ganhar tempo. Porque todos precisamos que a inflação desça. E para isso Medina perde 470 milhões de euros em IVA de bens essenciais, até Outubro, para ver se as grandes cadeias de distribuição cumprem o que dizem -- que os preços não subiriam tanto se houvesse IVA zero. Uma tese indemonstrável, mas que agora vai a jogo, sob supervisão. E com isso, os supermercados passam a ter legitimidade para tentar meter os produtores de novo na caixa, há algum tempo libertos da sala de tortura negocial. Pois agora há um argumento novo para impedir a subida de preços: o Governo não deixa.

Aliás, os produtores também recebem por este congelamento do mercado. A ajuda de 170 milhões prevista pelas Finanças levou o insuspeito presidente da CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal) a dar o benefício da dúvida ao Governo. Algo nunca visto nos tempos recentes.

No essencial, sabemos que o problema é muito mais vasto e não se resolve com subsídios eternos ou baixas de impostos transversais. Como diz Joseph Stieglitz, prémio nobel da Economia, n'O Preço da Desigualdade, chegamos aqui, entre outras razões, porque o feroz capitalismo financeiro expôs as famílias à dívida imobiliária de forma tão absurda que o mundo inteiro ainda hoje continua a pagar o preço da crise do "sub-prime" norte-americano. Na base desta incapacidade de as famílias viverem melhor está uma má distribuição da riqueza gerada na economia. É assim em quase todo o mundo.

Para atenuar a tensão, o Estado faz o que pode: dá 30 euros para as famílias carenciadas por mês, mas não resolve o problema da classe média, talvez porque não existam no debate público indicadores que demonstrem estatisticamente, e legitimem, medidas para outras faixas sociais. A restrição até ao sexto escalão de IRS, para apoio ao crédito à habitação, é um exemplo disso.

Ora, num estudo sobre o sector imobiliário da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o professor Paulo Rodrigues e a sua equipa incorporam um índice pouco falado em Portugal: o wealthy hand to mouth, ou seja, o rendimento disponível após pagamento da renda (ou da prestação da casa). É uma versão próxima da "taxa de esforço" e que demonstra o que sobra para comer e para os outros gastos normais das famílias. No estudo, os números mostram que, em Portugal, 17% de famílias de rendimentos acima da média, e 9% das abaixo da média, passam por enormes dificuldades de liquidez que afetam níveis básicos de vida. Mais: isso é visível sobretudo nos países da "crise das dívidas soberanas", ou seja, além de nós, Espanha, Itália e Grécia.

O retrato dado pelos média estes dias de que há alunos universitários que não conseguem ter uma refeição diária numa cantina universitária (a menos de 3 euros), porque ao fim do mês, 120 euros são incomportáveis, é absolutamente chocante.

E este é o impasse. Apesar de ter descido para 113,9% do PIB, o montante global da nossa dívida pública ainda é de 259 mil milhões. Cada 1% de subida de juros é um rombo no que resta do Orçamento. Daí o inalterável "mantra" nas Finanças: abater dívida. E na verdade, toda a "inteligência" nacional concorda com isto em silêncio, mas exige sempre mais qualquer coisa ao Governo. Queremos tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo.

O Governo tem usado o jackpot do investimento estrangeiro e do turismo para abater dívida e não ficarmos à mercê das empresas de rating e da chantagem no preço dos juros. É um exercício complexo: fazer de Portugal, simultaneamente, um país relativamente seguro e com alguma paz social, e ter contas certas.

O pacote da Habitação pode ser uma das chaves estruturais na alteração de paradigmas de pobreza e emigração, mas para isso têm de desaparecer algumas medidas "Pedro Nuno Santos/Marina Gonçalves" e usarmos essencialmente o dinheiro público para construir infraestruturas de transportes de forma a atenuar a procura imobiliária em Lisboa e Porto -- que continuará a existir, vinda de fora, porque Portugal é um país muito bom para se viver. E a nossa alternativa não é tanto impedi-la, mas sim a de criar um plano vasto de parcerias público-privadas na habitação. O Estado nunca conseguirá fazer sozinho, e em tempo útil, um pacto para dar teto às novas gerações e aos mais desfavorecidos.

Em simultâneo, com um país mais internacional, mantendo a capacidade de atrair talento para viver cá, teremos então melhores empresas, além de maior capacidade para fazer regressar os jovens portugueses que partiram e podem descobrir que é possível empreender a partir daqui. Mas só sairemos desta pobreza endémica com melhores salários e um Estado menos aflito de dívida.

O elefante não pode viver na sala para sempre. Temos de o mandar para o zoológico e ir visitá-lo apenas de vez em quando. E hoje ele é cor-de-rosa, mas se for laranja liberal não será menos pesado nem menos incómodo.

Jornalista

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG