Escrevi em tempos uma crónica em que contava que já tinha estado no país mais perigoso do mundo e que não me estava a referir ao Afeganistão, onde fui em reportagem em 2005, quando os talibãs faziam a vida negra à força multinacional chefiada pela NATO. Referia-me sim a El Salvador, por causa da elevadíssima taxa de homicídios. Ora, já não é verdade, felizmente. Houve uma extraordinário pacificação do pequeno país da América Central. E por isso a absoluta normalidade de Lisboa ter acolhido esta semana uma conferência sobre as oportunidades de negócio em El Salvador, organizada por Cristina Valério da Casa da América Latina, e promovida pela embaixada salvadorenha, e onde entre os contributos vários foi possível perceber que há empresas portuguesas que já atuam no país (como a Quidgest), mesmo que estejamos a falar de um mercado pequeno, pouco mais de seis milhões de pessoas..Se a embaixadora Rhina Bardi, que inaugurou há menos de dois anos a representação diplomática do país, fez o elogio esperado da nova situação sócio-económica, o nosso embaixador acreditado em San Salvador, Gonçalo Teles Gomes, entrou por vídeoconferência a partir do Panamá e deu o seu testemunho de visitas recentes, uma delas no início de junho para a tomada de posse do presidente Nayib Bukele, sobre a nova esperança que sentiu nos salvadorenhos em geral. .Para quem não conhece a história recente deste país de língua espanhola, banhado pelo Pacífico, resumo dizendo que a década de 1980 foi de guerra civil, com rebeldes comunistas a desafiarem a junta militar. Depois do acordo de paz de 1992, que integrou a guerrilha no jogo político e permitiu eleições democráticas (em 2009, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional venceu pela primeira vez as presidenciais) o desenvolvimento foi prejudicado pela violência das maras, gangues ultraviolentos que aterrorizavam a população e combatiam entre si. Em 2015, a taxa de homicídio chegou a ultrapassar os 100 por cem mil habitantes. Em 2008, quando visitei San Salvador para cobrir uma cimeira ibero-americana, foi de 50 por 100 mil, um ano excecional para o padrão da época no país. A título de comparação, Portugal e a maioria dos países da Europa Ocidental têm uma taxa abaixo de 1. Um país como o México tem perto de 30. Os Estados Unidos 7. Hoje, num mundo onde tem havido uma diminuição geral dos homicídios premeditados, a Jamaica destaca-se pela negativa com uma taxa acima dos 50 homicídios por 100 mil. El Salvador tem agora uma de 2,4..Por trás das mudanças em El Salvador está Bukele, uma figura que suscita admiração mas também controvérsia. Foi autarca de San Salvador eleito pela esquerda em 2015, venceu as presidenciais de 2019 contra um candidato de direita, criou depois um partido à sua imagem dizendo que não se deixa balizar pelas ideologias, conseguiu alterar a Constituição para candidatar-se a um segundo mandato, e foi reeleito em 2024 com mais de 80% dos votos. O seu maior êxito é sem dúvida a detenção maciça de membros das gangues, com construção de uma megaprisão de alta segurança, mas também as maiores críticas - que vem sobretudo do exterior - devem-se a uma justiça considera demasiado expedita e a suspeitas de acordos secretos com as próprias maras numa primeira fase da presidência..Paulo Neves, presidente do Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas (IPDAL), é um dos que conhece o antes e o depois de Bukele e não tem dúvidas em sublinhar os resultado: “Fiquei impressionado, na minha recente visita a El Salvador, com a segurança nas ruas da capital que contrasta flagrantemente com o perigo que senti no passado. Impressionou-me o otimismo do governo, das Instituições mas em especial das pessoas em relação ao futuro do pais. É de assinalar a redução drástica, no último ano, no número de salvadorenhos que imigram. É um bom sinal”. .O presidente do IPDAL, neste comentário que lhe pedi, faz, porém, um alerta: “Existem ainda muitos desafios no país mas alguns foram felizmente, por agora, ultrapassados como a questão da segurança pública, o investimento estrangeiro que tem aumentado, a confiança dos cidadãos nas suas instituições, a diversificação económica... mas coloca-se uma grande questão: quando milhares e milhares de jovens agora detidos saírem das prisões o que se vai passar? Serão inseridos no mercado de trabalho? Serão justamente inseridos na vida diária?”..Sem dúvida, foi a detenção dos gangues, com a pacificação do país, que permitiu a Bukele apostar na promoção do turismo (El Salvador tem uma natureza exuberante, até com vulcões, e as praias atraem os surfistas) e na captação de investimento estrangeiro (e da numerosa diáspora salvadorenha, sobretudo nos Estados Unidos). E, portanto, o seu legado só será duradouro se houver uma solução de longo prazo para a questão da criminalidade, a começar pela reinserção depois de cumpridas as penas. É o alerta que faz também Steve Killelea, o australiano que preside ao think tank que elabora o Índice Global de Paz, o tal em que Portugal é sétimo, a Islândia primeiro e o Iémen último (substituiu o Afeganistão como país mais perigoso do mundo no relatório de 2024) enquanto El Salvador subiu 21 posições, a maior das progressões, agora estando em 107. “A progressão de El Salvador deve-se às detenções em massa de líderes de gangues, que levam a uma queda substancial nos homicídios e na percepção de crimes violentos. Isto criou uma forte melhoria na tranquilidade, mas a questão é o que acontecerá quando eles finalmente saírem da prisão”, sublinhou Killelea, num comentário extra a uma entrevista que lhe fiz para o DN sobre o Índice Global de Paz. .Volto à minha visita em 2008. Recordo-me de ter visto uma loja da Vista Alegre em San Salvador. Disseram-que já não existe. Mas pelo que ouvi na Casa da América Latina esta semana, não me admiraria se tivéssemos notícia de novos negócios portugueses em El Salvador dentro de algum tempo. Tudo depende, creio, de esta pacificação - que mostra as possibilidades de transformação social de um líder convicto e com apoio da população - se transformar num projeto duradouro da sociedade salvadorenha como um todo, encontrando as soluções que impossibilitem um regresso ao passado e tragam prosperidade geral em respeito pela democracia. A forma como os salvadorenhos souberam sair da guerra civil permite ter alguma esperança.