Eanes faz 88 anos amanhã. Um homem maior que a sua biografia

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Dou por mim a pensar que no meio de tantos arbustos, se este homem fosse uma árvore seria certamente um sobreiro, essa espécie indígena tão resistente, de tão agarrada à terra, um sobreiro gigante e austero como aquele em que o fui encontrar, empoleirado lá no topo, de serrote em punho, a podá-lo e fazer lenha. Há 37 anos, no termo de dois mandatos consecutivos como chefe de Estado, após eleições com resultados históricos, tinha deixado há pouco a Presidência da República e também o fugaz partido (PRD) que se erguera em seu nome. Na quinta de família, junto a Alcains, acompanhava-o apenas o sargento-mor Serra, fiel escudeiro de muitos anos que, perguntado pelo nosso general, se limitou a apontar o velho sobreiro que fazia sombra junto à casa, nas margens do Ocreza. Desceu a sorrir e a explicar que é a poda que permite a renovação e favorece o crescimento.

Na segunda metade dos anos 50 do século passado, a guerra colonial ainda não começara, mas António dos Santos Ramalho Eanes já era alferes de infantaria, no início de uma carreira militar (chegou a sonhar ser médico) em que haveria de servir, sucessivamente, na então Índia Portuguesa, em Macau, em Moçambique, na Guiné-Bissau e em Angola. É ali, em Angola, que o 25 de Abril o vai encontrar, já como oficial ligado à fundação do MFA, o movimento que haveria de desencadear a Revolução.

Desde então, o percurso de Eanes confunde-se com o caminho de afirmação da democracia portuguesa. Vemo-lo a subscrever em 1973, com outros oficiais, o documento crítico e de demarcação do Congresso dos Combatentes do Ultramar. A questão colonial exigia uma resposta política, e só a democracia e o pluralismo, a autodeterminação e independência dos povos ultramarinos poderiam constituir respostas adequadas. Eanes é um militar do 25 de Abril, empenhado no respeito dos compromissos do Movimento das Forças Armadas, garantindo o predomínio das instituições civis e o respeito pela vontade cidadã.

Há 48 anos, em pleno turbilhão revolucionário, o nome de Eanes aparece pela primeira vez nos noticiários. Dizia Ortega e Gasset que "o homem é o homem e a sua circunstância". Ora, a circunstância deste homem, entre dois tempos, era então a de um major de infantaria num país que em menos de um ano tivera cinco governos; um país que fora potência administrativa e colonial e que se reduzia agora à sua expressão europeia e atlântica; num Portugal que, em pouco mais de três meses, acolheu mais de um milhão de portugueses na ponte aérea de "retornados", fugidos aos incidentes que antecederam ou que se seguiram às independências das antigas colónias ultramarinas. Há 48 anos, milhares de armas de guerra tinham desaparecido de alguns quartéis e eram distribuídas por organizações civis. Portugal dividia-se ao meio - mesmo entre os militares - e, divididos, estivemos a um passo da guerra civil. Foi o chamado Verão Quente de 75, que culminaria com o 25 de novembro, uma ação político-militar cuja coordenação operacional coube ao então major Ramalho Eanes.

Com o 25 de Novembro, Eanes consolida a sua ligação aos pais fundadores da democracia portuguesa e é, pouco depois, o escolhido pelo Conselho da Revolução para ser candidato às primeiras eleições presidenciais. À legitimidade das Forças Armadas associa-se a representatividade do apoio dos principais partidos políticos e dos setores mais dinâmicos da sociedade. E poucas semanas depois da aprovação da Constituição, Eanes é eleito pela primeira vez, por sufrágio direto e universal - à primeira volta e com a maior percentagem de sempre: quase 62%. É então que começa a institucionalização da democracia e a reorganização das Forças Armadas. Como escreveu um dia José Medeiros Ferreira (ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro governo constitucional, liderado por Mário Soares), "havia muita gente escondida debaixo da mesa quando Ramalho Eanes se ergueu contra o medo". E fê-lo sempre com serenidade, conta, peso e medida.

Para lá do seu papel como moderador na efervescente política interna de então, merecem, porém, referência os seus contributos para a afirmação de Portugal no mundo, depois de décadas de isolamento: Assim foi a primeira visita oficial a Espanha, em nome de uma boa vizinhança e de uma complementaridade política e económica, que culminaria na adesão de ambos às Comunidades Europeias na década seguinte; a ligação aos nossos emigrantes, a institucionalização do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, e uma atenção especial aos novos países independentes de língua portuguesa, dando ele próprio os primeiros passos para reconciliar Portugal com os novos estados africanos a quem trata por irmãos.

É com Eanes na Presidência que Portugal reabre as portas do diálogo no concerto das nações: em poucos meses, o então jovem presidente vai a Londres, onde preside à Cimeira da NATO, a aliança atlântica e, pouco depois à então República Federal da Alemanha, ao Brasil e à Venezuela, antes de discursar em Washington perante a Assembleia Geral das Nações Unidas e, logo de seguida, em Estrasburgo, perante o Parlamento Europeu. É também com ele que se estendem as relações de Portugal ao Leste da Europa. Eanes vai à Hungria, à Bulgária, Roménia e Jugoslávia. E é também nesse tempo que participa nos funerais de Agostinho Neto, em Luanda, e do marechal Tito, em Belgrado, e é recebido em Roma pelo Papa João Paulo II. Com Eanes e em democracia, Portugal vive um tempo novo.

Após dois mandatos presidenciais, e falecido o partido que nascera à sua sombra, Eanes saiu da cena pública com discrição, remetido nos últimos 35 anos a longos silêncios que, como alguém dizia, "sugerem um exílio interior perante tantos talentos à solta". É, desde então e por inerência, conselheiro de Estado. No ano 2000 declinou uma promoção a Marechal que outros em situações semelhantes aceitaram. Da mesma forma que, em 2008, prescindiu dos retroativos de quase um milhão de euros a que tinha direito, relativos à reforma e a 36 anos de carreira militar que nunca recebeu. Já em 2006, já com 71 anos, doutorou-se pela Universidade de Navarra, e dedicou-se ao estudo e à investigação com o mesmo propósito que sempre o caracterizou: "Um homem sério, honesto, austero, corajoso e incorruptível" como se lhe referiu o presidente Marcelo, o mesmo a quem, poucos dias depois da sua posse, Eanes confiou a espada, "símbolo da coragem", que lhe fora entregue pelos camaradas de armas, para que a conserve e transmita aos seus sucessores. Assim seja!

Jornalista

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