E Valência aqui tão perto
Escrevi recentemente, neste espaço, que existe um núcleo de capacidades que consubstanciam um domínio reservado do Estado, que não deverá ser alienado, por forma a preservar o próprio Estado de situações e crises complexas que possam reduzir a sua capacidade de resiliência, mesmo que se trate das regiões administrativamente autonómicas, e que a segurança, no seu sentido mais lato (“security” e “safety”), está definitivamente dentro desse domínio reservado. Escrevi isto, na ocasião, por causa dos Incêndios rurais na Região Autónoma da Madeira e penso que essa premissa se adapta perfeitamente no que toca aos recentes eventos que ocorreram em Espanha, na Região de Valência, capital da província homónima da Comunidade Valenciana, comunidade autónoma espanhola.
A descentralização no âmbito da segurança, neste caso da Proteção Civil, dificultou, pelo que podemos perceber, uma alocação mais eficaz e atempada de recursos e capacidades para mitigar os efeitos desta catástrofe e, como seria de esperar, assiste-se agora a ao passar de responsabilidades políticas e estratégicas entre o Governo Central e o Governo da Comunidade Valenciana.
Mas responsabilidades à parte, e porque é imperativo manter alerta as consciências coletivas, reconheçamos que esta tipologia de fenómenos atmosféricos não sucede só do lado de lá da nossa fronteira. E quando analisamos uma tragédia como esta, onde chuvas repentinas causam mais de 200 mortes (número que tende a aumentar), alguns pontos fundamentais devem ser destacados:
— As chuvas intensas e repentinas que atingiram Valência são, em parte, sintomas de padrões climáticos que se têm tornado cada vez mais extremos devido às mudanças climáticas globais, exigem um ajuste nos sistemas de previsão e resposta para uma maior eficácia e eficiência permitindo sobretudo uma decisão política e estratégica atempada na preparação do sistema de resposta;
— Em situações de chuvas torrenciais e rápidas inundações, o papel dos Sistemas de Alerta Precoce é vital. É importante examinar se as populações foram alertadas a tempo e de forma eficaz, e se a informação foi clara e acessível. Qualquer atraso ou falha nesses mecanismos deve ser analisada para garantir que, em futuros incidentes, os avisos cheguem rapidamente e de modo compreensível às comunidades em risco;
— A urbanização desordenada é um problema recorrente em áreas propensas a inundações, onde o crescimento das cidades muitas vezes desconsidera os riscos naturais. Esse é um ponto crucial para avaliar em Valência, pois construções em áreas vulneráveis a inundações intensas podem ter exacerbado o impacto. É essencial que haja uma revisão no planeamento urbano, com base em estudos de risco, para evitar que pessoas e construções sejam colocadas em áreas de alto risco;
— Muitas cidades enfrentam desafios significativos com infraestruturas de drenagem insuficientes, incapazes de lidar com volumes de água tão elevados. A catástrofe em Valência reforça a necessidade de investir em sistemas de drenagem modernos e de maior capacidade, projetados para enfrentar chuvas extremas. Adicionalmente, a implementação de áreas verdes e pavimentos permeáveis pode ajudar a absorver a água da chuva e reduzir as necessidades de escoamento;
— Analisar a resposta das equipes de emergência locais e avaliar a sua eficácia é um aspeto central. É preciso investigar se os serviços de emergência foram suficientemente rápidos e coordenados para resgatar e socorrer as vítimas, e se houve uma mobilização adequada de recursos, incluindo até a ponderação de ajuda internacional, se necessário. Importa escrutinar se a coordenação entre o Governo Central e o Governo Regional, existiu ou se fatores externos impediram essa fluidez de decisões;
— Em regiões propensas a desastres naturais, a educação e a preparação da população são essenciais. A catástrofe em Valência sublinha a necessidade de programas que incentivem comportamentos preventivos, ensinem a interpretar os sinais de perigo e a agir de maneira adequada em casos de inundações súbitas. Populações preparadas tendem a responder melhor e a agir de maneira mais segura;
— O evento em Valência evidencia a urgência de implementar um planeamento que inclua estratégias de adaptação ao clima e de mitigação de riscos. Incorporar as lições aprendidas com este desastre e realizar estudos de risco que possibilitem uma adaptação contínua das políticas públicas são passos importantes para reduzir a vulnerabilidade no futuro;
— Além da resposta imediata, deve enfatizar-se a importância de um apoio estruturado às vítimas e aos seus familiares, tanto emocional, quanto financeiro. A recuperação e reconstrução devem considerar os erros do passado e incluir medidas para aumentar a resiliência da cidade, protegendo os moradores de futuras catástrofes;
— Considerando a magnitude do desastre, evidencia-se que os sistemas de emergência de um país não conseguem, de forma isolada, responder com eficácia e eficiência a todas as necessidades destacando a importância de uma rede de cooperação internacional, tanto para oferecer ajuda imediata, quanto para trocar experiências e tecnologias de mitigação. Esta tragédia é um lembrete de que eventos naturais extremos são um desafio global, e a solidariedade entre nações pode ser decisiva na resposta e na recuperação (até ao momento não houve nenhuma solicitação oficial de apoio bilateral ou europeu).
Nunca estamos preparados para um evento desta magnitude. Temos de ter a frontalidade de admitir que os impactos de uma catástrofe desta índole, provoca sempre, qualquer que seja o país e qualquer que seja a sociedade, a incapacidade de fazer face com eficácia aos efeitos devastadores de um autêntico tsunami que vem de céu. Mas isso não inviabiliza que possamos e devamos fazer tudo o que está ao nosso alcance para minimizar estes efeitos e, sobretudo, socorrer atempadamente quem precisa de socorro.
Este tipo de evento climático extremo é cada vez mais frequente na Europa. E, por isso, a importância da cadeia de valor de Sistemas de Alerta Precoce e de uma Proteção Civil robusta não pode ser subestimada ou posta em causa. Prevenção, antevisão das decisões políticas aos vários níveis, treino, preparação e resposta rápidas são fundamentais para salvar vidas e reduzir danos, transformando tragédias anunciadas em crises que a sociedade consegue suportar e superar.