E um T2 na Arrentela com vista para o Lidl?
No verão de 2020, o primeiro em pandemia, senti genuinamente que devia dar resposta positiva ao apelo que era dirigido aos portugueses para fazerem férias no próprio país. Na altura, o impulso foi o de concretizar um desejo já antigo, fazer a Estrada Nacional 2, e o resultado foi uma viagem inesquecível pelo interior de Portugal. Mas não foi só isso: desta travessia também resultou a convicção de que deveríamos, em família, nos anos vindouros, com o tempo e a tranquilidade que os períodos de férias proporcionam, explorar mais a fundo toda a riqueza e variedade de património natural e histórico que o país tem para oferecer, em vez de colecionarmos destinos além-fronteiras.
Nos anos seguintes, ao pesquisar destinos de praia em território nacional, um dos aspetos que mais me impressionou foi o custo estupidamente alto para uma estadia no Algarve no verão, principalmente tendo em conta que umas centenas (ou meras dezenas) de quilómetros ao lado, na costa sul de Espanha, existiam ofertas muito mais em conta, em alguns casos por menos de metade do valor, para alojamentos similares na tipologia ou serviços prestados. A começar pelo meu caso concreto, não tenho dúvidas de que a escalada de preços no Algarve está a afastar muitos portugueses da região. A imagem típica de uma família a chegar ao Algarve de carro, com a bagageira quase a rebentar, para uma semana de férias, ameaça tornar-se, aos poucos, cada vez mais rara.
Não se trata apenas de a estadia ser hoje mais dispendiosa. É também o custo de vida na região que é mais elevado, principalmente na época alta. Nas principais conclusões do relatório anual do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a atividade turística em Portugal, referente a 2023, pode ler-se que o Algarve foi ultrapassado pela Região Norte no que diz respeito ao número de dormidas dos turistas residentes no país. Além disso, no que concerne a deslocações dos residentes em território nacional o Algarve caiu para quinto destino, sendo ultrapassado pelo Alentejo. Refira-se que tanto o número de dormidas como o de viagens de residentes subiu na globalidade do país em relação a 2022, mas houve três regiões que registaram decréscimos nos dois parâmetros: Açores, Madeira e... Algarve.
Há hoje um (pertinente) debate em curso sobre a forma como o turismo descontrolado prejudica o ambiente, diminui a quantidade de casas disponíveis para habitação e faz aumentar o preço das rendas e do custo de vida para os residentes. Discute-se também a necessidade de encontrar um modelo sustentável que saiba potenciar a riqueza que a atividade gera, transformando-a em benefícios concretos para toda a população (e não apenas para quem está ligado ao setor), sendo inegável a importância que o turismo tem para a economia do país na criação de emprego e oportunidades de negócio. Mas poucas vezes se fala do impacto que o turismo de massas tem no próprio turismo interno, afastando os cidadãos nacionais dos destinos de férias que se habituaram a frequentar durante décadas.
Há uns anos, durante uma conversa sobre planos para férias e respetivos preços, um amigo cunhou uma expressão que ainda hoje utilizamos: “Se tudo falhar, podemos sempre alugar um T2 na Arrentela com vista para o Lidl.” À data que escrevo esta crónica, uma consulta rápida num dos maiores sites mundiais de reservas permite encontrar nas imediações da Arrentela (povoação do Município do Seixal) um “quarto familiar com casa de banho partilhada”, com cama de casal e duas individuais. Infelizmente, ao contrário do que o meu amigo idealizava, não tem vista para o Lidl. Nem aceita animais de estimação. Mas, segundo a descrição do proprietário, tem “wi-fi de alta velocidade”, “área de jantar estilosa” com “decoração clássica, incluindo um candelabro vintage” e cozinha com “equipamentos modernos como micro-ondas”. Seis noites, logo na primeira semana de agosto, ficam por 383 euros (com desconto) – a título de comparação é quase tanto como um estudante paga, mas por mês, para alugar um quarto em Portugal (um valor, já por si, muito alto e que não para de aumentar, estando a média nacional em 397 euros/mês, segundo a última atualização, em junho, do Observatório do Alojamento Estudantil).
Se 2023 foi ano de recorde de visitantes a Portugal, superando os máximos históricos de 2019, a verdade é que 2024 vai pelo mesmo caminho. Nos primeiros cinco meses do ano foram registados 11,3 milhões de hóspedes e 27,7 milhões de dormidas, o que equivale a subidas de 5,3% e 4,4%, respetivamente, face a igual período de 2023.
À boleia dos hóspedes estrangeiros e do aumento dos preços, os proveitos totais do aposento turístico atingiram 1,6 mil milhões de euros (mais 11,9% face ao período homólogo). Pelo andar da carruagem, qualquer dia, ao residente nacional que queira (e possa) fazer férias no país já nem a Arrentela servirá de plano B.