E se no último segundo o doente grita "quero viver!"?
Quer por razões profissionais, quer por razões da minha vida pessoal, tive de estudar o mais profundamente que me foi possível a questão da eutanásia e do suicídio assistido. O debate que há anos se faz em torno deste assunto falha, parece-me, num aspeto que me parece crucial: os métodos para se proceder à concretização da opção pela morte antecipada de um doente incurável estão pouco discutidos.
Fui ver a proposta que, em princípio, será votada esta semana pelos deputados e que foi elaborada pelo Partido Socialista, que resulta já de uma reelaboração feita após os vetos e devoluções ao Parlamento decididos por parte do Presidente da República.
Depois de circunscrever as situações e as condições em que tal prática pode ser feita, a proposta de lei, sobre a metodologia a seguir, diz o seguinte: "O médico orientador informa e esclarece o doente sobre os métodos disponíveis para praticar a morte medicamente assistida, designadamente a autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente ou a administração pelo médico ou profissional de saúde...".
Portanto, a metodologia seguida (li o restante texto que vai ser votado e nada vi nele que contrariasse o que vou dizer) implica sempre um único processo: aplicar, pelo próprio ou por pessoal médico, um conjunto de drogas que concretize essa morte.
O meu primeiro impulso é simpatizar com a ideia de permitir a eutanásia às pessoas em sofrimento e com doenças incuráveis (se pensar em mim próprio, acho que em agonia similar provavelmente desejaria uma solução dessas), mas, para além de todas as questões éticas, morais, civilizacionais, constitucionais, economicistas, religiosas e outras que tal prática suscita, há este problema para o qual não encontro solução: como impedir a morte em caso de arrependimento de último segundo?
A administração de drogas para causar a eutanásia ou o suicídio assistido, pelo que me foi dado perceber, implica sempre a existência de um pequeno espaço de tempo em que a pessoa ainda está viva (no mínimo, segundo li, cinco segundos). Nessa altura, porém, já não se pode ou é praticamente impossível inverter o processo.
Se nesse pequeno espaço de tempo a pessoa estiver inconsciente, pelo efeito dos barbitúricos ou dos analgésicos utilizados, não consegue aperceber-se do momento da morte, nem consegue comunicar o eventual arrependimento de último segundo.
Se estiver consciente, mas se no seu corpo já tiverem sido injetados os medicamentos que param o coração e a respiração, é praticamente impossível evitar a morte caso a pessoa manifeste uma renovada vontade de viver.
Esta proposta de lei, que pretende melhorar a condição humana, cria, portanto, duas possíveis situações tremendamente desumanas e pode matar pessoas que, apesar de todas as precauções e confirmações anteriormente tomadas, decidem que afinal não queriam morrer naquele preciso momento ou morrem sem terem direito de manifestar essa nova vontade de viver mais um pouco.
A proposta do PS não prevê a chamada "eutanásia passiva", onde o processo usado é retirar ao doente os medicamentos e a alimentação que o mantém vivo. Se o fizesse, porém, enfrentava outro problema: o risco de prolongar o sofrimento, tornando tragicamente insuficiente o pedido de eutanásia, e o de não se perceber na sociedade qual a diferença dessa metodologia da já permitida proibição de distanásia, pois a fronteira que separa a eutanásia da proibição de obstinação terapêutica é, para o cidadão comum, muito ténue e isso pode gerar equívocos graves e fatais.
Há, portanto, uma série de dúvidas fundamentais para as quais me parece não haver respostas satisfatórias. Se eu estou a ver mal este problema e estas respostas existem por eventualmente a ciência as conhecer, deveriam então ser explicitadas na proposta de lei, que deveria então prever a metodologia correta a seguir, não permitindo variações. Nada disso está lá...
Há, depois, todas as outras dúvidas que o longo debate acerca da eutanásia expôs e há também muitos argumentos fortemente válidos a favor da sua instituição.
Mas esses não são os meus pontos de discussão para hoje. A minha questão, agora, é esta: como é que uma lei pode assegurar que se faz eutanásia sem matar quem, no último segundo, grita "afinal, ainda quero viver!"?
Jornalista