E se Adélio tivesse pistola?

Em 2017, no contexto mais amplo de tentar ouvir as ideias de todos os pré-candidatos às eleições presidenciais do ano seguinte, o DN entrevistou Jair Bolsonaro.

Até então apenas um preguiçoso deputado de baixíssimo clero, conhecido por dizer umas perversidades sobre ditadura e tortura em programas de entretenimento, Bolsonaro, tudo espremido e bem espremido, só tinha uma ideia a apresentar: o "excludente de ilicitude".

Economia? Trivialidades de fascistoide de café. Educação? Umas balelas impingidas por Olavo de Carvalho, o "filósofo" que orienta, de cajado na mão, a bovina extrema-direita brasileira. Política externa? Declaração de amor ao então recém-eleito Trump e nada mais. Três anos depois, diga-se de passagem, não evoluiu um milímetro em nenhum dos temas.

Mas sobre "o excludente de ilicitude" fluiu, alegre e seguro. Era "excludente de ilicitude" para cá, "excludente de ilicitude" para lá.

E o que é o "excludente de ilicitude"? "Um dispositivo para que quem defenda a sua vida não sofra punição porque as leis atuais estão do lado dos marginais", definia o próprio. "Hoje em dia um polícia dá dois tiros na via pública e é condenado; um brasileiro dá dois tiros em casa num bandido e é condenado", exemplificava.

No fundo, uma "legítima defesa" alargada que permite ao agente de autoridade matar sem ser punido - e só em 2019, apenas no Rio de Janeiro, seis crianças, todas negras e habitantes de comunidades carentes, foram mortas por balas perdidas disparadas por polícias.

Nesta semana, depois de investir milhões em dinheiro público para convencer os deputados a votarem no seu preferido para a presidência da Câmara dos Deputados, Bolsonaro anunciou que o novo chefe do parlamento vai agendar a votação do tal sonhado "excludente de ilicitude". Em paralelo, votar-se-ão também projetos de lei que facilitam o acesso às armas.

Ora, no estado de São Paulo, o mais populoso do Brasil, 83% dos homicídios dão-se por "motivo fútil", segundo dados de 2011 e 2012 do Conselho Nacional do Ministério Público, que até lançou na época uma campanha sob o slogan "conte até 10", para inibir ímpetos fatais.

Trocando por exemplos: naqueles cruzamentos sem semáforo capazes de gerar insultos, discussões e trocas de socos, com o acesso irrestrito a armas, os condutores de automóveis agora podem ir buscá-la ao carro, poupar uma dor no punho, ganhar a discussão por KO e matar o insulto pela raiz; e naqueles bares onde fanáticos de futebol se reúnem à volta de uma televisão e de muita cerveja, a divergência sobre se é ou não penálti poderá ser resolvida à bala, o novo VAR de botequim. Se o rival também tiver arma na mão, quem disparar primeiro alegará "excludente de ilicitude".

"Não tenho medo de armas!", disse, entretanto, Bolsonaro, de peito cheio, na semana passada, a propósito destes reparos. "Povo armado jamais será escravizado!", continuou, citando frase do fascista (este, pelo menos, assumido) Benito Mussolini.

Ou seja, o mesmo Mussolini que acabou fuzilado por uma pistola-metralhadora MAS-38, citado pelo mesmo Bolsonaro, que, se Adélio Bispo, o autor do atentado de Juiz de Fora, tivesse usado uma pistola em vez de uma faca, não estaria vivo para ver aprovado o seu bem-amado "excludente de ilicitude".


Jornalista, correspondente em São Paulo

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG