No domínio da dialética dos seus adversários ideológicos e políticos o termo direita conservadora expressa um complexo de símbolos negativos que visa o isolamento, o ostracismo, o distanciamento. Distanciamo-nos de tudo aquilo que nos causa embaraço e repulsa. Nas palavras da própria Theresa May: “You know what some people call us: the nasty party”. .Associar a direita conservadora a esta ideia de aversão, de contágio, de infeção da qual é urgente, para sobrevivência do próprio corpo social, o total distanciamento é, na verdade, o grande sucesso ideológico dos seus adversários, na medida em que, zelosamente assessorados pela Comunicação Social, pela Cultura e pela Academia, conseguiram tornar o conservadorismo, para todos os efeitos práticos, uma doença para a qual é preciso um cordão sanitário. .O espaço aberto da disputa dialógica e das diferentes visões da ordem social é cada vez mais concebido como um lazareto no qual é necessário encerrar, isolar e conter os leprosos, sob pena de, deixados à solta – portanto, em liberdade –, infetarem toda a comunidade. A noção de cordão sanitário implica, justamente, a noção de proscrição, de expurgação, de distância de segurança. A ostracização, cada vez mais severa, da direita conservadora é indissociável desta crescente sanitarização da nossa conceção democrática.A campanha dos detratores operacionaliza, para efeitos de desqualificação, o termo extrema-direita, hoje com pouco conteúdo – remetendo, felizmente, para a História do século passado, ou para uma franja minúscula dos sistema políticos em vigor – mas saturado de eficácia. Para percebermos o seu funcionamento, devemos concentrar-nos menos no seu conteúdo e mais no seu efeito. O termo extrema-direita não descreve atualmente um objeto, ativa uma atitude (o embaraço e a censura generalizados, a inibição própria)..Diríamos, na esteira dos “atos de fala” do filósofo J. L. Austin em “How to Do Things With Words” (1962), que o termo extrema-direita é menos descritivo do que performativo: realiza uma ação mediante a palavra: realiza a ação de ostracizar, de isolar, de proscrever..Este processo de distorção e degradação conceptual que tomou posse da distinção entre direita conservadora e extrema-direita permite-nos compreender como da total deslegitimação política decorre necessariamente a tendência para o recurso à violência política e à eliminação física do adversário. A retórica de demonização, cada vez mais intensa, dos políticos de direita, sobretudo os mais carismáticos, encoraja a violência. Os atentados contra a vida de Donald Trump e Jair Bolsonaro são exemplos disso. .Tudo isto é possível pelo domínio cultural que a esquerda exerce atualmente e ele é consequência da renúncia da direita em promover os seus valores, dos quais, em grande medida, se envergonha. Tendo a direita desertado, a esquerda limitou-se a ocupar uma casa abandonada. Este abandono, esta desaparição da direita, deve-se a uma rendição de proporções históricas: a direita rendeu-se e só há pouco tempo começou a pensar totalmente a sua própria rendição e a reagir. .O paradoxo mais inquietante desta rendição é que a direita se rendeu no exato instante da sua vitória. Colapsado o Muro de Berlim, e o mundo murado que ele simbolizava, a direita rendeu-se. A esquerda, pelo contrário, que há muito compreendeu (e muito melhor do que a direita) a importância decisiva do combate cultural, nunca desertou dele. Nem sequer quando o muro e o mundo ruíram diante dos seus olhos e em cima das suas convicções. Na manhã seguinte, enquanto os vitoriosos e os libertados celebravam o “fim da História”, estes pedreiros incansáveis estavam já de novo diante das ruínas do seu sonho, reconstruindo a velha ideia. .A esquerda compreende muito melhor do que a direita (alguma direita) que as grandes doutrinas políticas - socialismo, liberalismo, conservadorismo - são expressões de visões da sociedade e da natureza humana, sem as quais a política não faria sentido. Todo o combate é, fundamentalmente, um combate de ideias - e dos modelos cognitivos e morais que elas promovem. Um povo é o veículo histórico através do qual uma ideia se reproduz e se transmite a si mesma ao longo dos tempos. Sem o povo, a ideia não se transmite. Sem a ideia, o povo não tem o que transmitir. O resultado, em ambos os casos, é um beco sem saída condenado à extinção de uma e de outro. .Uma vez que a direita tem sido (in)compreendida à luz do que os seus adversários ferrenhos dizem dela, talvez seja a altura de entrarmos no combate pela compreensão do que é o que tem sido chamado de extrema-direita e que mais não é do que o conservadorismo adaptado aos problemas dos nossos tempos..O conservadorismo atual é herdeiro de uma longa e poderosa tradição intelectual que é necessário revisitar e revigorar. Roger Scruton, que dedicou ao esclarecimento deste conceito algumas das páginas mais ricas do pensamento conservador contemporâneo, descreve-o como a herança coletiva de coisas admiráveis e sagradas que nos devemos empenhar por preservar, conservar, ou seja, salvar da profanação. As coisas admiráveis são facilmente destruídas e dificilmente criadas: “o trabalho de destruição é rápido, fácil e recreativo; o labor da criação é lento, árduo e maçador”..O conservadorismo, num outro sentido que procuramos explorar aqui, assenta em três contratos, três grandes vínculos sociais, interligados mas merecedores de uma explicitação separada: (1) o vínculo intergeracional ou o Contrato das Gerações, (2) o vínculo normativo ou o Contrato dos Direito e Deveres, e (3) o vínculo representativo ou o Contrato da Representação. .Em primeiro lugar, o Contrato das Gerações. Atualmente, a Europa (na verdade, o Ocidente) vive uma profunda crise intergeracional que a faz pensar-se no curto prazo e, nesse sentido, esgotar-se num eterno presente condenado ao declínio e à extinção. O contrato entre as gerações passadas e as futuras, de que as gerações presentes constituem apenas a curta ponte e os fiéis depositários, tem vindo a ser violado e desbaratado em nome de cálculos e interesses de curto prazo. Não apenas os bens e recursos materiais (económico-financeiros) mas também imateriais (axiológico-culturais), cuja guarda cada geração presente assume em nome dos depositantes do passado (os nossos pais e avós) e do futuro (os nossos filhos e netos), têm sofrido um processo de erosão às mãos de elites políticas, culturais e mediáticas encerradas na bolha impenetrável do seu ensimesmamento..A condição de possibilidade do Contrato das Gerações é que as gerações presentes se imaginem como pontes, e não como terminais. Que se imaginem como capítulos, e não como epílogos, de um livro que começou a ser escrito na noite dos tempos e onde há ainda muito por escrever a partir de amanhã. A nova direita conservadora não pensa a Europa como a soma das suas feridas e culpas ainda por mortificar, mas como um legado (passado) e projeto (futuro) de virtudes, como a paz, a liberdade e a prosperidade cuja transmissão às gerações futuras nos foi confiada pelas gerações passadas. .Em segundo lugar, o Contrato dos Direitos e Deveres. O resultado deste ensimesmamento temporal das elites é o fechamento normativo generalizado. Uma sociedade que deixa de se pensar em termos de passado e futuro, mas apenas presente, é uma sociedade que deixa de pensar em si mesma em termos de deveres e passa a conceber-se apenas como uma máquina de reivindicação de direitos, onde todo o dever é visto como uma forma de opressão. Sem deveres para com os outros (vivos ou mortos, do passado ou do futuro), deixamos de nos conceber como cidadãos: somos apenas consumidores. De bens, de recursos, de direitos. Atomizados e fechados assim no consumo e na autossatisfação, vamos perdendo a noção de pertença comunitária, de responsabilidade social, de compromisso histórico, de cuidado humano. .Para um conservador, um dever não significa algo de negativo, um direito de que abdicamos. Pelo contrário, um dever é um direito que preservamos ativamente. Um dever é um direito do outro que eu preservo em seu nome. O conservadorismo visa o reequilíbrio dos dois elementos deste Contrato, sem o qual condenamos o exercício dos direitos a ser apenas o fetichismo egoísta e fanático próprio das sociedades que, incapazes de imaginar os deveres em que assenta o seu princípio de vitalidade, se encaminham em direção ao seu próprio declínio..Em terceiro lugar, o Contrato da Representação. Assistimos hoje a um distanciamento cada vez mais acentuado entre as elites políticas e as populações que aquelas dizem representar. O crescimento da nova direita, orgulhosamente conservadora, vaidosa das suas tradições e do contrato que selou com as gerações passadas, expressa sem margem para grandes dúvidas esse profundo distanciamento. Há quase uma década, num livro presciente, o escritor francês Houellebecq escrevia sobre “o fosso crescente, tornado abismal, entre a população e aqueles que falam em seu nome, políticos e jornalistas”..Ainda recentemente, vimos em França e no Reino Unido como, em momentos de crise, o sistema eleitoral pode revelar-se um mecanismo institucional contra o eleitorado cuja vontade é suposto traduzir e representar. Em França, o partido que vence claramente o voto popular é o terceiro partido representado na Assembleia criada justamente para dar expressão ao voto popular. No Reino Unido, quase dois terços do parlamento britânico foram eleitos por praticamente um terço do voto popular. A este nível de desencontro e de distorção entre a vontade popular e o mecanismo institucional que visa dar-lhe tradução é impossível disfarçar a profundidade do divórcio entre as instituições e as populações, bem como a necessidade de reforma das primeiras em nome das segundas. .Mudar o povo é próprio das tiranias. As democracias, mais sóbrias e modestas, consistem na mudança das elites. Os partidos políticos não são fins em si mesmos, são meios de realização de bens sociais (tangíveis e intangíveis) e de cumprimento deste triplo contrato, também ele tangível e intangível. Os partidos servem a sociedade, e não o contrário. Alguns partidos, em Portugal e na Europa, porque esqueceram a importância deste triplo contrato, só descobriram a sua própria mortalidade no exato instante em que morreram. .O conservadorismo atual, e a nova direita que o assume, visa resgatar este triplo contrato e deter o processo de decomposição dos vínculos sociais a partir dos quais tecemos a nossa identidade coletiva, sem a qual seremos reduzidos a peças anónimas e atomizadas de uma conceção mecanicista e tecnocrática das sociedades humanas, sem identidade e sem passado. E, portanto, sem futuro..Para um conservador, a memória não é apenas aquilo que nos liga ao passado – é também aquilo que nos conduz ao futuro. Para um conservador não há, assim, nenhuma batalha mais importante nos nossos dias do que derrubar o cordão sanitário - em rigor, o cancelamento - que a esquerda e a direita velha querem impor a uma das grandes doutrinas políticas: o conservadorismo. Pois nele reside toda a esperança dos tempo que está para vir.