E depois da democracia?
O cronista lembra um artigo que aqui mesmo escreveu há quatro anos, quando Biden derrotou Trump.
Nesse artigo eu citava um notável poema do grande poeta norte americano Walt Whitman, Election Day 1884, em que, com metáforas fervorosas e a toda a energia do seu fôlego poético, Whitman celebrava as eleições democráticas nos Estados Unidos.
A verdade é que, enquanto este poderoso apelo à força da democracia era publicado, Whitman vivia um período de dúvida e de descrença na democracia norte americana, que o levou a nem sequer ir votar naquelas mesmas eleições que celebrara no poema.
Não há qualquer duplicidade nesta atitude do poeta, antes uma crença em valores que devem estar por cima das nossas próprias dúvidas e insatisfações. E, se em 1884 o duelo não tinha nenhum candidato a ameaçar a própria matriz fundadora dos Estados Unidos, hoje não temos dúvidas que a vitória de Trump é uma ameaça maior à democracia na América e no Mundo.
Nós pensámos que os progressos em matéria de direitos e liberdades que vimos acontecer nos nossos dias seriam robustos e imortais, como o mármore em que Horácio sonhava gravar os seus versos. Mas hoje vemos que tudo é vertiginosamente reversível, que nada do que foi adquirido nos é assegurado e que talvez Horácio se devesse ter contentado em pensar o futuro dos seus versos nos frágeis pergaminhos em que eles foram trazidos para a posteridade.
E nós próprios, quando começamos a ter medo de um eleitorado em que, como dizia o poeta Yeats, “os melhores perdem todas as convicções, enquanto os piores / estão cheios de apaixonada intensidade”, não estaremos também a duvidar da democracia? É que são bem maiores os poderes de um presidente norte-americano com maioria nas duas câmaras do Congresso e no Supremo Tribunal, mau grado todos os checks and balances da Constituição americana.
Sabemos o que são autocracias. Vivemos numa em Portugal, pelo menos nós, maiores de 60 anos. Mas as atuais são, se isto é possível, mais perigosas, por tecnologicamente muito mais evoluídas e culturalmente muito mais atrasadas; perdida qualquer base ética, elas fundam o seu poder na manipulação das massas, pelas novas tecnologias, e na descarada mentira. Mas os seus princípios não mudaram, eles pretendem assentar a coesão da sociedade no medo e no ódio mais irracionais aos outros, dentro ou fora da comunidade. E, sempre que for preciso, é claro, “uns safanões a tempo”...
Assim como Whitman, apesar de todo o seu desgosto com a democracia norte americana, não deixou de ser o grande cantor da Democracia, assim nós, por insatisfeitos que estejamos com as nossas democracias, não podemos resignar-nos e baixar os braços face a esta maré obscurantista e antidemocrática que vemos alastrar.
Não é tempo de transigir com os nossos princípios, nem de voltar os olhos para trás.