Duas ou três coisas sobre corrupção

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O discurso político que lança o anátema de corruptos à generalidade de quem exerça cargos públicos tem sido, a meu ver, mal esclarecido por aqueles que, sabendo que há, como haverá sempre, corrupção, não podem aceitar que essa falha seja abusada e generalizada. Sabemos que muitos eleitores do Chega se sentem atraídos por aquele discurso, porque são pobres, se sentem excluídos da política e da economia e recebem conforto de quem lhes vende o medo dos outros, da diferença e da mudança. Para mais num discurso que compreendem, ao invés dos discursos que metem as palavras macroeconomia, défice orçamental ou resiliência. 

O primeiro passo para desmontar os discursos populistas é confrontá-los com factos de uma forma que seja compreendida pelas pessoas. Num mundo que mudou radicalmente nos últimos trinta anos, e perante um decaimento da politização dos mais novos, é natural o receio da velocidade, do distinto, do desconhecido. Esta angústia pública não é muito diferente da angústia privada, a construída entre o trabalho e as carências de quotidiano e os paraísos instantâneos das redes sociais. Mas a primeira é mais fácil aparentemente de controlar, desde logo através da atração por um passado, que muitos aprenderam na escola-propaganda do Estado Novo, que aparece como pobre, mas honesto, sempre grandioso e moral nos seus propósitos, simples, compreensível, linear, sem dúvidas ou ambiguidades, acompanhado por uma censura que comprimia a imprensa e a discussão pública. 

Nesse passado, note-se, não havia discurso público sobre corrupção – mas abundava a corrupção. Que é tema largamente tratado desde a Idade Média pelos nossos políticos e não uma novidade da democracia. O fresco “O Bom e o Mau Juiz”, descoberto há algumas décadas no antigo tribunal de Monsaraz e provavelmente do século XV, representava precisamente dois juízes, o bom de cara limpa, segurando a sua vara inteira, o mau com duas caras, de vara quebrada e recebendo de forma esquiva uma bolsa de moedas, aconselhado pelo Diabo, incitando-se pedagogicamente a recusar o segundo. A corrupção era, portanto, um problema. As Ordenações do Reino, aliás, insistem nisso mesmo, ao longo de séculos, assinalando que comete crime quem “levar peita”, ou seja, quem receber um suborno, ou se apropriar de bens e quantias públicas, em desvio do seu destino devido. E isto num contexto histórico em que cargos públicos eram comprados ou a eles se acedia de forma hereditária. 

O sistema político construído pela democracia plena do pós-25 de abril, com as suas aprendizagens e limitações, é inquestionavelmente aquele mais transparente, que mais limitações criou às oportunidades de corrupção e que mais meios e capacidade deu às instituições de a controlarem e punirem, especialmente nas três últimas décadas, sempre com uma imprensa livre de investigar e de publicar. 

Se um partido político entende que a corrupção é generalizada e lhe cabe limpar desse mal o sistema, deverá, no mínimo, conhecer muitos casos que não foram objeto de investigação e julgamento e minam a economia, os recursos públicos e a concorrência. Seria bom perguntar quantos denunciou às autoridades. Ou saber o que acha da decisão da nova Administração Trump, sendo seu grande admirador, que levantou as limitações legais que existiam para empresas norte-americanas quando em práticas corruptivas atuando no estrangeiro, mandando suspender todas as investigações em curso, a bem da sua “competitividade”. 

 Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 

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