Duas ou três coisas e muitos milhões sobre jornais antes de ir ao Fundo

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O sonho de todos os jornalistas - bem, quase todos, mas já lá vou - é ter como proprietário o multimilionário Charles Foster Kane, disposto a perder um milhão de dólares todos os anos com o seu jornal. Mais que resignado a esse acto de filantropia cidadã, o cidadão Kane estava mesmo disposto, como disse depois de ter perdido um milhão no ano anterior, “a perder um milhão este ano, e espero perder um milhão no próximo”. A este ritmo, concluía filosoficamente, “vou ter de encerrar esta coisa daqui a 60 anos”.

Até os leitores menos atentos já terão percebido que este filantrópico cidadão Kane é a personagem inventada por Orson Welles no filme de 1941 naturalmente intitulado Cidadão Kane, inspirado pelos multimilionários rivais americanos William Randolph Hearst e Joseph Pulitzer (o benfeitor do prémio de “excelência” do jornalismo), e que se distinguiram por terem sido os fundadores, inspiradores e patrocinadores dos dois maiores jornais de escândalos e intrigas da sua época, o New York Journal e o New York World, com as suas “agendas políticas” (como agora se diz) e pessoais, um apoiante do Partido Republicano e o outro do Partido Democrata, mas essencialmente apostados em conquistar influência e ganhar muito, muito dinheiro com os seus pasquins à scandale, cujas tiragens atingiam as muitas centenas de milhares de exemplares por dia. Diz a lenda que as campanhas do New York Journal contra as “atrocidades” espanholas em Cuba estiveram na origem da invasão da ilha pelos Estados Unidos. Os historiadores há muito que desbancaram esta simpática teoria - simpática para os adeptos das teorias da conspiração e dos poderes mágicos dos media (e já lá vou também) - mas o que é certo, e irrefutável, é que o milhão de dólares que Kane estava disposto a perder em 1941 equivale hoje a quase 21 milhões.

Embora as contas do cidadão Kane fossem ficcionais, estes números não são irrealistas. Veja-se o que outros multimilionários - e estes reais, não ficcionais - estão a perder com os investimentos que fizeram na imprensa. Patrick Soon-Shiong, um bilionário que comprou o Los Angeles Times (tiragem diária de 142 000) em 2018 por 500 milhões, e continuou a investir dezenas de milhões de dólares todos os anos, perdeu, no ano passado, cerca de 40 milhões. Jeff Bezos, o fundador da Amazon, comprou o Washington Post (tiragem diária de 139 000) em 2013, e no ano passado o prejuízo do jornal foi de 100 milhões. Nem todos os grandes gigantes da imprensa mundial estão a perder dinheiro. Ainda. No ano passado, os lucros da News Corporation, o conglomerado de Robert Murdoch que agrupa títulos como o Times de Londres e o Wall Street Journal (tiragem diária de 984 000) foram de 187 milhões. O problema é que no ano anterior tinham sido de 760 milhões, uma perda de 75 por cento.

É certo que o negócio dos jornais - e os jornais são um negócio, ninguém anda aqui para perder dinheiro a não ser saudosos beneméritos como o eng. Belmiro de Azevedo e a Sonae, que todos os anos perde muitos milhões com o Público - é hoje um negócio de media. Para sobreviverem num mundo em que há cada vez menos leitores e compradores das edições em papel, os jornais tiveram de se reconverter ao digital e às plataformas online, como o Facebook e o Instagram, onde se geram as maiores receitas publicitárias. O New York Times, só para dar um dos exemplos de sucesso, anunciou há semanas que ultrapassou 10 milhões de assinaturas (670 mil na edição em papel, nove milhões e 400 mil na edição digital), registando no ano passado lucros de 89 milhões de dólares. Isto, apesar de uma quebra de 70 000 assinaturas da edição em papel.

O que paga os jornais são as receitas de publicidade. O preço que o leitor dá por este jornal não paga nem o papel em que é impresso, nem os custos com tipografia.

E a publicidade nos jornais em papel é cada vez menor, e espera-se que desça este ano cerca de cinco por cento. Quase metade do que os anunciantes gastam vai para televisão, 40% para o digital - aquele anúncio irritante que aparece sempre que faz uma pesquisa no Google ou no YouTube - e o resto distribuído por diversos meios. A publicidade paga nos jornais é menos de 6% do total do que os anunciantes gastam.

Quem paga, assim, todos os outros custos de um jornal? Os jornalistas, os gráficos, o secretariado, as instalações, as deslocações, os telefones, a água e a luz, e as mil e uma pequenas despesas essenciais ao funcionamento? Pagam, evidentemente, os proprietários e os que investem à espera de um retorno para o seu investimento. A ideia, muito apregoada hoje de que deve ser o Estado a financiar o jornalismo, seja através de subsídios directos às empresas ou aos salários, seja através da nacionalização ou de uma vaquinha entre municípios, como sugerido pelo presidente da CM do Porto para resolver o problema do Jornal de Notícias, seria ingénua se não fosse perigosa.

Quem viveu, ainda não há muitos anos, o tempo em que a maioria dos jornais e a única estação de televisão eram propriedade do Estado, lembra-se claramente das danças de directores ao sabor das mudanças de Governos, da interferência directa de ministros no conteúdo editorial e da apetência de primeiros-ministros pelo controlo do que se diz e escreve e da vontade de silenciar vozes incómodas. Nem é preciso recuar ao tempo em que os media estavam nacionalizados, e até este mesmo jornal - o DN - esteve financeiramente estrangulado quando um dos seus maiores directores, Mário Mesquita, se tornou o inimigo número um de Mário Soares. Em 1983, e é bom refrescar a memória, o Diário de Notícias - propriedade do Estado - tinha salários em atraso e a solução do Governo do Partido Socialista passava por um plano de suspensão de contratos e reformas antecipadas. Mas recuemos apenas alguns anos e lembremo-nos da tentativa de José Sócrates de silenciar a TVI. Seria mais do mesmo. Outra vez.

Os jornalistas e demais trabalhadores do DN e dos outros meios do grupo, incluindo o Jornal de Notícias, estão sem receber salário há quase dois meses, e enfrentam novamente um plano de viabilização que passa pela redução do número de trabalhadores. O plano, apresentado pelo novo investidor, o World Opportunity Fund, foi o primeiro passo numa guerra entre accionistas, cujo desfecho é impossível de prever, mas que, entre outras consequências além do não-pagamento de salários, abriu a tradicional caixa de Pandora para toda as especulações e insinuações sobre os motivos e as intenções do misterioso fundo.

Ninguém neste jornal, a começar pela sua direcção, sabe quem são os financiadores do Fundo e quais os seus objectivos ao comprar um grupo de media com défices crónicos há anos. O projecto que nos foi apresentado foi o de revitalizar este jornal e mantê-lo independente e crítico dos poderes - sejam eles quais forem - e com uma presença forte tanto nas notícias como na opinião. Se o Fundo, ou quaisquer outros investidores, têm uma agenda escondida, não sabemos. Mas não pertencermos aos quase 24 por cento da população, políticos e jornalistas incluídos, que segundo o professor de Psicologia Clínica de Oxford Daniel Freeman sofrem de casos de paranóia e mania da perseguição que vão do leve ao extremo. Mas sabemos apenas que resposta dar quando, e se, estes ou outros, quiserem transformar o DN num porta-voz de um qualquer interesse escondido, ou não.

Quando este mesmo jornal foi comprado há 100 anos por industriais da moagem para o transformar em porta-voz dos seus interesses (é uma longa história, mas em resumo era uma guerra entre moageiros que queriam trigo barato e latifundiários que queriam taxas aduaneiras altas para conter a importação de trigo e manter os preços elevados), o grande jornalista Rocha Martins resumia assim, respondendo aos que queriam “que essa nobre máquina [o DN] passasse a ser movida por gente de frete, por tipos de aluguer, por malandrecos às suas ordens”, só porque tinham comprado o jornal com todo o seu recheio, “e nessa ideia de recheio ia também a consciência dos jornalistas”. Para esses novos donos, “possuir o Diário de Notícias consistia exactamente no mesmo em que possuir a sua fábrica”. Achavam os novos donos, “os senhores das sacas de farinha e os Deuses do macarrão, os compradores da dignidade profissional”, dizia Rocha Martins, “tão lógico aviar as ideias como o pão. Encontrava o mesmo encanto em ludibriar amplamente o público: no peso e nos argumentos.”

No Diário de Notícias não vendemos nem pão, nem propaganda. Apesar de não receberem salário, os seus jornalistas e a sua direcção vão continuar - enquanto puderem e até decidirem outras formas de luta, que podem chegar à greve - a pôr na rua, todos os dias, um jornal independente, que orgulhe quem nele trabalha e satisfaça quem o compra e lê. É só a esses, os leitores, a quem damos a nossa dignidade profissional.


Diretor do Diário de Notícias

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