Dos diferentes usos das memórias

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Pâle soleil de l’oubli, lune de la mémoire,
Que draînes tu au fond de tes sourdes contrées?

Jules Supervielle

Por muito que a memória seja a espinha dorsal da nossa identidade, sabemos bem que não poderia haver memória sem esquecimento. Se experimentarmos confrontar recordações com aqueles que partilharam as nossas experiências, logo veremos as diferentes memórias que cada um de nós guardou dos mesmos acontecimentos. O que persiste na nossa memória é desenhado pelas nossas crenças e conceções e colorido pela nossa imaginação.

Por isso, a empresa de escrever memórias pode ser abordada, ou pelo lado racional das nossas crenças e conceções (e muitas vezes preconceitos), e temos então memórias articuladas e pensadas como uma mensagem aos vindouros (por exemplo, Chateaubriand); ou, pelo lado da imaginação, reconstituir todo um passado, todo um tempo perdido, após a degustação de um bolo, que em tempos idos era dádiva de uma parente (Proust, evidentemente).

Escrever memórias impõe uma escolha entre a nossa personagem pública oficial e a nossa personagem pública íntima. Da primeira, há que relatar acontecimentos, testemunhos e façanhas; da segunda, tão pública e construída como a primeira, mas apelando a uma cumplicidade diferente com o leitor, há que contar pensamentos, sentimentos e impressões.

Claro que os grandes memorialistas sabem combinar os dois elementos: as apreciações políticas de Chateaubriand coexistem com a descrição dos seus estados de alma, como Proust não evita assumir posições políticas claras, nomeadamente quanto ao Caso Dreyfus. Mas a história política modula toda a narrativa de Chateaubriand e o caso político é aludido por Proust como um escândalo, mas sem contextualização.

Dou-me conta hoje que nas memórias que fui escrevendo, ainda não publicadas, deixei predominar a personagem pública íntima e não o ator-espectador da História.

A História passa por nós, abala-nos até ao fundo, transforma-nos em seres que nos custa hoje a reconhecer, mas é difícil fazer coexistir a imagem desse vulcão e da sua lava com a análise racional e friamente histórica dos acontecimentos. É tão difícil falar da Revolução que vivemos, como de uma paixão passada.

Ora normalmente o leitor espera dos livros de memórias revelações, segredos ou anedotas que se insiram num discurso racional histórico, inseridos na vida de alguém que, por muitos papéis diferentes que tenha assumido, apresente aos nossos olhos de leitores um discurso construído e coerente, apto a viver com todas as suas metamorfoses. Já a surpresa da metamorfose e a consciência profunda do tempo que ela nos traz faz o triunfo de Proust no Temps Retrouvé.

Stefan Zweig, com o seu habitual bom senso burguês, explica-nos que “tudo o que esquecemos da nossa própria vida foi porque um secreto instinto o tinha há muito condenado ao esquecimento; só o que queremos conservar para nós próprios tem o direito de ser conservado para outrem” (O Mundo de Ontem).

Sabemos que não é assim tão racional, a chave das nossas escolhas. Mas sei que cada um escreve as suas memórias conforme aquilo que é e, sobretudo, aquilo que quer mostrar aos outros que é. Todas as memórias falam da persona, mais do que da pessoa.

Dois livros completamente diferentes de memórias serviram-me de ponto de partida para estas reflexões: um, de que já falei, Antes Que Me Esqueça, de Francisco Seixas da Costa, uma coleção de histórias vividas e muito bem narradas; o outro, antes um diário, mas fundamentado na memória e na amargura do tempo, A Desoras, de Marcello Duarte Mathias.

E, por fim (não há duas sem três...), o excelente livro de memórias de Jorge Calado, Mocidade Portuguesa.

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