Dor psicológica não é doença mental
"Não consigo fazer a minha vida. Sair de manhã para o trabalho é um terror. Eu deito-me com medo. Estou sempre à espera de quando me vou sentir ansioso. Isto dos ataques de pânico destrói-me! Sinto que estou a perder a sanidade mental e não sei o que tenho. Não sei o que fazer. Estou a tomar medicação há oito meses e tudo se mantém. Apesar de me terem dito que é ansiedade, não consigo entender porque é que estou a viver isto..."
João surgiu na consulta com um olhar profundamente assustado. Veio em desespero de causa. Um amigo tinha-lhe dito que deveria tentar a psicoterapia. Já tinha procurado apoio médico, espiritual, e terapias ditas alternativas. Sem nunca ter passado por nada idêntico e de forma inesperada, aos 45 anos de idade, tem um ataque de pânico no metro. Um dia igual a tantos outros, mas que o marcaria para sempre. Uma hecatombe que não tinha nome, nem explicação, tinha acabado de acontecer. Assim foi sentido o ataque de pânico. Primeiro, remeteu-se ao silêncio. Não contou nada à mulher, nem aos familiares. Mais tarde, procurou ajudas. Uma delas no médico de família. A medicação, no caso do João, não teve grande efeito. Após ligeiras melhorias, os ataques de pânico, voltaram. Um desabafo em desespero, com um amigo de infância, levo-o finalmente a considerar o apoio psicológico.
Posteriormente, em processo terapêutico, João percebeu que estava a esconder algo de si próprio: a imensa tristeza sobre o seu casamento e o medo de destruir uma família (como sentia a possibilidade de separação), estavam profundamente escondidos dentro de si. Fazia anos. De início, foi como um despertar doloroso, de quem abre os olhos a custo, perante uma luz intensa. Que magoa. Nestes momentos, há em primeiro lugar, um processo de reconhecimento: "é isto que eu realmente sinto. Não tenho, de facto, uma relação de afecto com a minha mulher, mas sou incapaz de terminar a nossa relação. E dizer aos meus filhos que não amo a mãe deles...a culpa é do tamanho do mundo..."
A história do João é muito comum e reflecte a necessidade de se distinguir sofrimento psicológico de doença mental. As perturbações psicológicas decorrem, sobretudo, do confronto entre o modo de ser da pessoa com as situações de vida. Características de personalidade, história pessoal e situações de vida, criam uma dinâmica interdependente, que coloca qualquer pessoa nesse fio da navalha, que é a construção de um projecto existencial. Ora, a construção de uma vida, não está previamente delineada. A complexidade que decorre do desenvolvimento pessoal, e os desafios inerentes ao mesmo, conduz inevitavelmente à existência de momentos de tensão, de perturbação, de sofrimento. Mais, no caminho da vida, não raras vezes acumulamos experiências que só mais tarde compreendemos os seus reais significados e impactos. Vive-se mais, muito mais, comparativamente ao que pensamos. É como se tivéssemos uma arca cheia de experiências e só pensamos sobre um terço delas.
No entanto, a maneira como, desde há muito tempo decidimos lidar e interpretar os problemas das perturbações da vida, foi pela via da patologia. Sofrer da construção do nosso projecto de pessoa é, invariavelmente, visto como doença. Com consequências nefastas. Desde logo porque produz percepções erróneas sobre o que significa ser-se pessoa e como esta se constrói; sobre o que pode ser entendido como normal e patológico; e sobre quais devem ser as opções, quer individuais, quer as de sociedade e de políticas públicas, para se intervir em casos de sofrimento psicológico. As sociedades ocidentais patologizaram a vida. Decorre daqui a lógica de diagnósticos médicos, e como consequência, o aumento exponencial e sempre em crescendo dos psicofármacos. Neste campo, Portugal está no top dos rankings europeus. As mulheres e os homens portugueses são dos maiores consumidores de psicofármacos, em particular, de ansiolíticos e antidepressivos. A lógica de diagnóstico médico, não será a mais adequada, para a maior parte do sofrimento psicológico sentido pelas pessoas. A investigação científica demonstra que, quando as pessoas pedem ajuda psicológica, a definição de um diagnóstico contribui apenas 2% para a resolução dos seus problemas. E o que significa esta percentagem tão reduzida? Que há variáveis que contribuem consideravelmente mais para o restabelecimento da saúde psicológica: as características pessoais de quem pede ajuda, o seu nível de motivação para se compreender e porventura trabalhar na mudança, a sua rede de apoio familiar e social.
Ou seja, a pessoa, as suas características, a sua história, o suporte humano que possa ter, são sistematicamente, mais importantes que a perturbação em si mesma. Confirmando algo há muito sabido: que a perturbação não é a pessoa e que a cura para o ser humano, faz-se quase invariavelmente, por conexão social e relacional, também estas, humanas.
Director Clínica ISPA
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia