Do romantismo da carreira diplomática
A diplomacia falhou. A guerra na Ucrânia ou, mais recentemente, o reacender do conflito israelo-palestiniano são provas inequívocas disso. Todavia, a conjuntura atual reflete sobretudo a necessidade de investir na diplomacia. No caso português, e apesar da excelência que caracteriza o nosso corpo diplomático, esta é uma necessidade perentória, mas que esbarra sistematicamente na ideia obsoleta do romantismo da carreira diplomática - que prejudica os diplomatas e o país.
Que não haja dúvidas quanto às extraordinárias experiências que os diplomatas acumulam ao longo das suas carreiras. Aliás, os próprios são os primeiros a reconhecer e agradecer a oportunidade única que é servir Portugal, deixando frequentemente memórias escritas tão extraordinárias quanto as palavras as permitem descrever. Não obstante, esta não é uma carreira cómoda. A tabela remuneratória e o Estatuto da Carreira Diplomática mantêm-se inalterados desde 1998 e, ao contrário do que se possa pensar, os croquetes servidos nos cocktails não alimentam os diplomatas e as suas famílias.
Recorrendo ao humor e sem desprezar o rigor, é comum definir-se um diplomata como alguém que pensa duas vezes antes de não dizer nada. Contudo, o descontentamento parece estar mesmo em crescente. Segundo um questionário realizado pela Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses (ASDP), uns inéditos 85% dos inquiridos admitiram participar num protesto escrito para apresentar ao Ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) - que se recusa a abrir negociações salariais, como deu conta a Presidente da ASDP numa audição parlamentar realizada no passado dia 26 de setembro.
Mais, há postos onde é insustentável para diplomatas com família viverem. Não será por acaso que a Missão Permanente de Portugal junto da Organização das Nações Unidas é composta exclusivamente por diplomatas homens, solteiros e sem filhos - à exceção da Representante Permanente.
No que concerne a esta questão, será pertinente mencionar o estudo realizado recentemente a pedido do MNE sobre Género e Acesso à Carreira Diplomática - uma vez que apenas 32,4% dos diplomatas são mulheres. Deste, destaco a mais do que esperada identificação da carência de apoios à conciliação entre a vida profissional e familiar e a consequente recomendação da elaboração de medidas mitigantes deste problema. Além disso, seria interessante refletir se condições que possibilitem uma melhor conjugação do sucesso profissional com a família não atrairiam mais mulheres qualificadas para prestar o concurso e ingressar na carreira, e, simultaneamente beneficiar todo o corpo diplomático.
Porém, é difícil para qualquer Governo trazer para a agenda política a carreira diplomática. Noto que, segundo um inquérito de 2019, a maioria dos portugueses (60%) não atribuem mérito à nossa máquina diplomática nem em questões como a eleição de António Guterres para Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas. Dito isto, a primeira forma de resistência será a opinião pública e a perceção romantizada da diplomacia.
Um segundo obstáculo à persecução destas reformas será o peso das várias carreiras da função pública. Enquanto existem em Portugal cerca de 60 mil médicos ou 81 mil enfermeiros, estão em exercício de funções públicas apenas 528 diplomatas, incluído os destacados em organismos públicos fora do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). E, afinal de contas, como dizia o personagem Sir Humphrey na célebre série britânica Yes, Prime Minister: "A diplomacia é sobre sobreviver até ao próximo século. A política é sobre sobreviver até sexta-feira à tarde". Justifica-se, assim, que as prioridades sejam outras.
No entanto, não poderia discordar mais. Se só temos 528 diplomatas - e são precisos mais -, é imprescindível dar-lhes as devidas condições para o desempenho das suas funções, sobretudo numa conjuntura global que se vai complexificando. São eles que estão na linha da frente a apoiar os nossos concidadãos e a defender os nossos interesses políticos, económicos e culturais no mundo.
Deste modo, para bem dos diplomatas e do país, é tempo de abandonar tabus e a ideia preconceituosa de que a carreira diplomática é uma espécie de romance aristocrático. Hoje, ser diplomata é fascinante, sim, mas não luxuoso. Ou melhor, como é costume ouvir-se dizer, ser diplomata não é uma carreira, é um modo de vida. Ora, então, tratemos destas vidas com modos.