Do ódio ao ressentimento

No canto mais sinistro do nosso imaginário estarão certamente gravadas aquelas cenas de acidentes rodoviários em câmara lenta, feitas com manequins no lugar de humanos. Observamos o carro a embater lentamente contra um muro para, numa singular mistura de tragédia e imunidade, nos tornarmos os espectadores do choque frontal que estilhaça os vidros, prensa a chaparia e arremessa os corpos de plástico para fora. A função dessas imagens de campanha preventiva, pretensamente pedagógicas, seria alertar-nos, em tempo, para o perigo das más condutas de quem conduz, enquanto ainda não ocupamos o lugar daqueles manequins impessoais, produzidos para serem destruídos.

Ora, numa sociedade exausta pela pandemia e golpeada por desigualdades descontroladas, os soluços e sobressaltos da política portuguesa dos últimos meses fazem lembrar isso mesmo: cenas de uma colisão em câmara lenta, onde só falta saber quando vamos embater. Isto, quando, para lá do Parlamento e do governo, a generalidade dos atores políticos parecem instalados em campanha permanente, pervertendo as estações naturais da democracia. E, no entanto, ainda há um ano por esta hora se apanhavam as canas de um foguetório eleitoral que dava ao PS 41,3% dos votos dos portugueses, uma confortável maioria absoluta da qual se esperaria estabilidade e impulso reformista. Entre nós, apesar dos efeitos da guerra, que se fazem sentir nas economias por toda a Europa, há certamente indicadores positivos que contrariam as expectativas mais pessimistas. A confiança dos consumidores portugueses melhorou pela primeira vez nos últimos três meses; a confiança da indústria e do comércio também subiu; o turismo pode voltar a repetir, em 2023, os melhores valores de 2019, antes da pandemia; o PIB pode crescer na ordem de 1,5% acima das previsões do governo; o desemprego tem-se mostrado estável em valores (6%) considerados baixos; e os fundos europeus para este ano atingem valores históricos: 11 mil milhões de euros, três vezes mais que em 2022.

"A extrema-direita alimenta-se da desilusão, do ódio e do ressentimento. A banalização dessa ameaça é um sintoma da deterioração democrática. E, como noutros casos, corremos o risco de ela poder passar de sintoma a alternativa de governo."

E, no entanto, um ano depois, as últimas sondagens revelam um crescente mal-estar, sinais de um país zangado com a situação, com o PS a perder um terço dos seus potenciais apoiantes, após uma sucessão de "casos e casinhos" que revelam falta de liderança e autoridade, e com um PSD em crise de identidade, incapaz de acenar com alternativas, mesmo quando, pela primeira vez em muitos anos, a soma de intenções de voto favorece uma maioria de direita. Em resumo, uma política que tende a tribalizar-se, mais agressiva e radical nos extremos. E nada desta imagem favorece a atração de investimento estrangeiro.

Com o Banco Central Europeu empenhado em continuar a aumentar as taxas de juros para conter a inflação em alta, milhares de famílias começam a sofrer com o agravamento das hipotecas, enquanto muitos empresários hesitam entre despedir trabalhadores ou aumentar mais os preços. É neste caldo de incerteza, desconfiança e crispação que emergem os "salvadores da pátria", cavalgando o descontentamento popular que cresce entre a precariedade no emprego ou os salários corroídos pela espiral inflacionária. Os teóricos da Ciência Política assinalam que um princípio básico da quebra das democracias é a presença de partidos antissistema que minam a legitimidade do regime. Ora, para quem escutou algumas das principais intervenções que se ouviram na Convenção do Chega, o alerta já aí está: Em Portugal como noutros países da Europa, a extrema-direita alimenta-se da desilusão, do ódio e do ressentimento. E, como noutros casos, corremos o risco de ela poder passar de sintoma a alternativa de governo. O maior risco das nossas democracias não procede de nenhuma ameaça externa, está cá dentro. E a banalização dessa ameaça é outro sintoma da deterioração democrática.

Jornalista

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