Do aborto e da liberdade

Na proclamada terra dos livres, o Supremo votou um acórdão que recusa debater se a decisão de abortar tem alguma coisa a ver com liberdade, não referindo sequer os direitos das mulheres. Há até juízes que defendem que a Constituição americana não dá garantias sobre liberdade. Só a de andar armado, pelos vistos.
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No documentário de 2017 realizado pelo seu filho, Paula Rego fala muito sobre aborto. Fala das mulheres que conheceu na juventude, quando também ela abortou várias vezes (ilegalmente, não havia outro modo), de como arriscavam a morte - e algumas morreram - para abortar, de como nada as demovia se fosse essa a decisão, de como eram, no martírio e solidão que tão bem representou na sua obra, a imagem da força. A dada altura diz: "É uma questão de liberdade".

A questão da liberdade no aborto, ou melhor, a ideia da interrupção da gravidez como um ato de um ser livre que escolhe, seja qual for o risco, foi sempre pouco grata na discussão pública em Portugal sobre o assunto. Os slogans "O corpo é meu", "A barriga é minha" (que na verdade se leem "Eu sou minha"), são geralmente tidos como "demasiado radicais" e "contraproducentes".

O debate sobre a interrupção da gravidez em Portugal (que ontem celebrou um dos seus aniversários, o do primeiro referendo, a 28 de junho de 1998, quando o "Não" ao aborto por vontade da mulher ganhou) também nunca se baseou na defesa da privacidade, do direito a manter privado aquilo que só diz respeito a quem engravida, ao mais íntimo reduto do indivíduo; o argumento dominante dos que defenderam a legalização foi sobretudo de que o aborto é uma coisa má, moralmente errada, mas que sucede e que não devemos castigar ainda mais quem passa por ela. O argumento mais usado foi pois o da compaixão e da saúde pública: as mulheres como vítimas, como coitadas a quem era preciso ajudar/salvar, a quem se concedia um indulto.

Muito raramente houve vozes como a de Paula Rego, a assumir que no centro da questão está a liberdade, uma liberdade não-domável, não-controlável e, portanto, o poder - o poder da mulher de decidir se quer, ou não, e de só dela depender essa decisão, até por estar disposta a arriscar tudo: dor, opróbrio, a vida. Para, precisamente, ser, ou continuar a ser, senhora da sua vida, de si e do seu destino. Tratando-se assim, então, de exigir a legalização da interrupção da gravidez por respeito, por reconhecimento de uma vontade, de um direito, de uma dignidade, não por tolerância ou sopeso do "mal menor".

Pensei em Paula Rego quando li o acórdão desta sexta-feira do Supremo Tribunal americano, conhecido como Dobbs, que revoga as decisões Roe e Casey, de 1973 e 1992. Desde logo ao descobrir nele, tão ironicamente, uma frase de Abraham Lincoln - "Somos todos a favor da liberdade, mas ao usar a mesma palavra não queremos dizer todos a mesma coisa" - e ao passar pela descrição dos fundamentos das decisões revogadas.

"Os defensores de Roe e Casey afirmam que o direito ao aborto é parte integral de um direito mais vasto e estabelecido", relata o acórdão. "Roe designou-o por direito à privacidade, e Casey descreveu-o como a liberdade de fazer "escolhas íntimas e pessoais" que são "centrais na dignidade e autonomia pessoais"." Mencionando a seguir o facto de Casey ter argumentado que o direito constitucional ao aborto se funda na 14ª Emenda da Constituição, naquela que é referida como a "cláusula da liberdade", Dobbs cita uma frase da decisão de 1992: "Na essência da liberdade está o direito de cada um definir o seu conceito da existência, do sentido, do universo e do mistério da vida humana".

Mas, quando esperava que a esta descrição se seguisse, no acórdão, uma refutação de que o direito ao aborto se ancora nos direitos fundamentais à privacidade e à liberdade, dei comigo a ler a certificação de que "na altura da adoção da 14ª Emenda três quartos dos estados tinha tornado o aborto crime em qualquer altura da gravidez e os restantes iriam fazê-lo em breve." Assim, conclui Dobbs, a 14ª Emenda, surgida após o fim da escravatura nos EUA (abolida em 1865) e declarando a igualdade de todos os cidadãos, não pode ser invocada para fundamentar o direito ao aborto porque quem a escreveu não o tinha em mente; não sendo o aborto mencionado na Constituição, nem estando o seu direito "enraizado" na "história e tradição" dos EUA (interessante, a ideia de que, para estar enraizado na história e tradição americanas, teria de ser legal), não pode ser reconhecido.

Já sabia, como o resto do mundo, desde maio - quando uma fuga inédita de informação divulgou o rascunho do juiz Samuel Alito, autor da "opinião maioritária" (ou seja, relator do acórdão votado favoravelmente por cinco dos nove juízes) - que a argumentação escolhida para revogar Roe era estapafúrdia, mas ainda assim esperava um arremedo de discussão, de inteligência. Não esta espécie de interpretação talibânica, fundamentalista, "à letra", da Constituição. Que, afirmando não tomar posição sobre a questão de fundo - se o aborto deve ou não ser permitido e em que circunstâncias -, se dedica, longa e contraditoriamente, a invocar a "tradição" de criminalização, chegando ao ponto de citar Henry de Bracton, um jurista e clérigo (na época eram a mesma coisa e ainda hoje o são, em muitas paragens) do século XIII que o via como homicídio.

Bracton também disse "as mulheres diferem dos homens em muito aspetos, pois a sua posição é inferior à do homem", frase que o acórdão não cita. Aliás se há coisa que este acórdão não faz é falar de mulheres, do seu estatuto e direitos, de como evoluíram e com eles, necessariamente, a interpretação de uma Constituição do século XVIII. Margaret Atwood, a canadiana autora da distopia misógina The Handmaid"s Tale, na qual um Estado teocrático escraviza as mulheres como máquinas de reprodução, escreveu na revista Atlantic, em maio, sobre o rascunho de Alito, e a sua certificação de que a Constituição não fala de aborto. Para lembrar que também não fala das mulheres - porque não existiam como pessoas inteiras na jurisdição da época.

Aliás, prossegue Atwood, quando as mulheres ganharam o direito de votar, em 1920, através de mais uma emenda constitucional, houve muitos que se opuseram por se tratar de uma novidade que "ia contra" a Constituição original. E a escritora conclui: pela ordem de ideias dos cinco juízes que subscreveram a opinião de Alito, também se pode pensar em revogar o Direito de Voto das mulheres - tem só mais 53 anos que Roe, vai-se a ver e não está "enraizado na tradição".

De facto, este tipo de raciocínio, ou de leitura da Constituição, aplica-se a muito mais direitos: se não existiam antes, se não têm "tradição", por que haverão de ser reconhecidos?

Podemos começar pelo direito a adultos decidirem consensualmente, em privado, o que fazem na cama. Em caso de estar a pensar que essa questão não se põe num país ocidental no século XXI, atente a que vários estados americanos tinham leis a criminalizar a sodomia (10 deles quer entre homens quer entre mulher e homem) até este século, mais precisamente até 2003. Ano em que o Supremo, na decisão Lawrence vs. Texas, reputou a criminalização de inconstitucional, usando o mesmo argumento que a decisão Roe invoca em relação ao aborto: o direito à privacidade. Aliás o juiz Clarence Thomas, na sua declaração de voto (concordante) em Dobbs, já advertiu para o facto de que, "caindo" Roe vs. Wade, outras decisões conexas deverão cair, entre elas Lawrence. Desde 1991 no Supremo, onde entrou pela mão de Bush pai, Thomas tinha em 2003 votado vencido, não por ser a favor da criminalização da sodomia, mas por considerar que a Constituição americana não garante o direito à privacidade e à liberdade.

Poder-se-á dizer - é o que o acórdão faz e Thomas defende - que ao revogar Roe vs. Wade, como se o fizer em relação a Lawrence, ao casamento das pessoas do mesmo sexo (decisão de 2015) e à proibição de segregação racial nas escolas públicas (Brown, 1954), o Supremo está "apenas" a passar, democraticamente, a decisão para os estados, ou seja, para os eleitores.

Sucede que ao admitir que matérias atinentes ao núcleo essencial dos direitos fundamentais do indivíduo, à sua dignidade e decisões mais íntimas, podem ser decididas livremente por maiorias mais ou menos engendradas (dada a prática de supressão eleitoral e de gerrymandering, ou seja a manipulação de regiões eleitorais para criar vantagem partidária ilegítima), o Supremo não está só a dinamitar o direito das mulheres a dispor da sua vida e a abrir caminho para barbaridades como proibir o aborto em qualquer circunstância - violação, incesto, fetos inviáveis, fortemente deficientes, risco de vida para a grávida. Está a derrubar, de uma assentada, a ideia da Constituição como garante contramaioritário dos direitos individuais - à exceção, anote-se, do de andar armado (tendo em vista a sua recente decisão que declara inconstitucional a lei do Estado de Nova Iorque que limitava o porte de arma em público).

Enquanto se investiga se o 6 de janeiro de 2021 foi ou não uma tentativa de destruir a ordem constitucional americana, o Supremo acabou de o fazer.

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